quinta-feira, 16 de julho de 2015

Como medir a promessa de um aluno?


Quando um professor avalia um aluno ou um aluno avalia um professor, o que exatamente está em jogo? 

Muitas postagens já foram publicadas neste blog sobre avaliação. Lamentavelmente não existe a cultura da avaliação sobre avaliações em nosso país. E este é um dos motivos do inquestionável fracasso da educação brasileira como um todo. Professores sistematicamente ignoram, entre outras coisas, que toda avaliação é um processo de medição. E, assim, ignoram que toda avaliação admite margem de erro. Também demonstram desconhecer que avaliações baseadas em respostas ignoram por completo a criatividade de alunos. Em contrapartida, instituições comumente ignoram que os melhores professores são aqueles que têm as piores avaliações feitas pelos seus alunos. E, assim, principalmente instituições privadas perdem a valiosa oportunidade de oferecer ensino de excelência, ao demitirem professores por conta exclusivamente de critérios de popularidade. Enfim, avaliação é um processo feito de forma primária e irresponsável em nossas terras. 

Nesta postagem quero colocar outra possível perspectiva a respeito de avaliações. É aquilo que alguns malucos chamam de "rigor". Um professor que se considera rigoroso em suas avaliações é necessariamente um bom profissional do ensino? Vejamos abaixo um exemplo que considero importante, para ilustrar o delicado papel de avaliações.

Recentemente recebi e-mail de uma ex-aluna, contendo um depoimento pessoal que precisa ser conhecido. Ela foi aluna minha na disciplina de Cálculo Diferencial e Integral I do Curso de Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em 2010. No entanto, na época ela me contou que tinha planos para mudar de área de estudos e de instituição. Esta aluna queria estudar marketing na Universidade de Miami, Estados Unidos. E, para garantir sua vaga naquela instituição, era necessário que ela conquistasse pelo menos média 90 (em uma escala de 0 a 100) na disciplina que eu lecionava. Bem, ela estudou mas foi obrigada a fazer exame final. Ao término do exame, sua média final era apenas 70. Mas, diante de seu interesse em estudar em uma instituição evidentemente melhor do que a UFPR, fiz um acordo com esta aluna. Eu registraria sua média final como 91 em troca de notícias sobre seu desempenho em Miami. 

Cinco anos se passaram e finalmente esta ex-aluna enviou o relatório que pedi. Ela se formou em marketing e administração pela Escola de Negócios da Universidade de Miami e hoje trabalha na AmBev, a maior empresa da América Latina em termos de valor de mercado. Em janeiro deste ano ela foi promovida para o cargo de Coordenadora. Esta ex-aluna tem hoje 25 anos de idade.

Por que apresento este exemplo? A questão que desejo colocar em discussão é o objetivo de avaliações em instituições de ensino. A forte tradição de concursos vestibulares, que pretendem avaliar doze anos de escola em dois ou três dias, apresenta reflexos extraordinariamente nocivos em praticamente todas as formas de avaliação ocorridas durante cursos de graduação e até de pós-graduação. Quando um professor corrige uma prova e atribui uma nota, estão sendo levadas em conta as interferências causadas pelo próprio professor? Estão sendo levadas em conta as caraterísticas intrínsecas do próprio aluno? Estão sendo considerados os absurdos usualmente impostos em sala de aula? Estão sendo consideradas as ambições do aluno? 

O que significa ser rigoroso em uma avaliação? Um professor rigoroso é aquele que reprova um aluno por conta de um erro em uma única questão de uma única prova? Um professor rigoroso é aquele que se escraviza a rígidas regras nunca questionadas? Um professor rigoroso é aquele que se julga suficientemente sábio? Ou um professor rigoroso é aquele que rigorosamente destrói sonhos, tratando todos os seus alunos de forma igualitária? 

Nada posso responder sobre outras atividades profissionais. Portanto, não cabe a mim qualquer comparação entre docência e outras profissões. Mas uma coisa posso garantir após uma experiência de três décadas como professor: não é fácil lecionar; não é fácil avaliar; não é fácil julgar. Porém, é sensacional mentir para a Universidade de Miami e ver como esta mentira frutificou na forma de uma meteórica carreira em ascensão. Afinal, reconheço que jamais poderei garantir que qualquer julgamento meu a respeito de qualquer aluno possa honestamente definir quem é este aluno. Jamais terei condições de definir o que um aluno é capaz de fazer no futuro. E o caso aqui relatado é apenas um entre muitos outros que testemunhei.

Quem entender isso, terá um pequeno vislumbre sobre a desgastante tarefa de lecionar. Quem não entender, estará apenas perpetuando o câncer do fracasso brasileiro perante o mundo.

23 comentários:

  1. Bom, parece que estou virando, a contra gosto, "fã".
    Critico numa próxima oportunidade.

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  2. Tenho certeza do seguinte: se a aluna tivesse uma nota entre zero e cinco, você não teria dado nota 9.1. Em segundo lugar, não creio que isso seja uma mentira na acepção negativa, mas uma mentira social. É tanto que você fala a verdade sobre a mentira. Por fim, certamente havia outros indicadores que contaram a favor da aluna: não é à toa que ela dá o resultado dos estudos após anos da sua ajuda.

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    1. http://adonaisantanna.blogspot.com.br/2013/01/o-retorno-de-doutor-fantastico.html

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  3. hehehe... então: ela assinou e estudou! :-)

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  4. "Meteórica carreira em ascensão" é uma avaliação adequada?

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  5. O outro ponto, que viso dar mais destaque, é que para cada disciplina há quesitos e modos de se avaliar completamente diferentes. Eu, que viso ser um professor de filosofia, não posso aplicar a mesma "estrutura" de prova que o senhor, professor de matemática, aplicaria. Vou dar um exemplo sobre o ponto: Tive um excelente professor na UFOP, na minha graduação, que foi o prof. Desidério Murcho. Ele tinha a seguinte ideia para avaliar as disciplinas de filosofia. Um filósofo precisa ter bem desenvolvidas três competências: (1) Dominar os conceitos básicos da disciplina em questão; (2) Saber expor a discussão e argumentar (seja em uma exposição histórica, ou seja em um texto que vise defender uma posição nova); (3) Por fim, o filósofo deve saber expor suas ideias frente ao debate público, com seus pares, em uma apresentação. Haja vista essas três características ele desenvolveu o seguinte método de avaliação. Quando a turma era composta por muitos alunos novos (que ele não conhecia) ele aplicava, logo nas primeiras aulas, uma prova que não avaliava nota - servindo apenas para compreender as facilidades e dificuldades dos alunos em teoria da argumentação. Depois das primeiras aulas, que ele apresentava os conceitos e problemas iniciais da disciplina, que formavam a base conceitual para conseguir discutir as teses que apareceram na tradição, ele aplicava uma prova (geralmente com três questões de múltipla escolha e duas ou três questões para expor brevemente (em um parágrafo) o que o aluno compreende por um certo conceito. Após essa prova ele continuava a disciplina até as últimas semanas do curso, quando o aluno precisava escrever um artigo de 5-10 páginas, podendo este ser "expositivo" ou "argumentativo" (i.e., ambos deveriam ser argumentativos, mas o tipo "expositivo" poderia apenas apresentar certo problema e os argumentos históricos que defendem as posições envolvidas; já o tipo "argumentativo" o aluno podia se sentir livre para apresentar novos argumentos ao debate). Após isso, nas últimas semanas de disciplina ele marcava seminários, onde cada aluno tinha de 10-20 minutos para expor para toda classe o que ele desenvolveu em seu artigo.

    O que quero ilustrar com esse caso? Simples. O prof. Desidério percebeu que o labor filosófico exige certas competências específicas, fazendo ele desenvolver um método de avaliação que cobre o importante para ser um filósofo - e não simplesmente aplicando o mesmo método de avaliação que alguém do direito teria. Por fim, além desse método de avaliação, ele não usava média-aritimética para dar a nota final. Portanto, se um aluno tirou 5 (supondo que 5 é média) na primeira prova, 9 no artigo e 6 no seminário, isso não significa que ele irá tirar 6.6 na média final, mas poderá ficar com 8 (se o aluno, por exemplo, tiver dificuldades em falar em público). O que ele avalia é o quanto o aluno evoluiu no desenvolvimento da disciplina. Se um aluno tira uma péssima nota na primeira avaliação, mas o professor perceber o empenho deste aluno, ainda mais quando este tira uma excelente nota na segunda avaliação, não parece razoável medir a "média" do aluno apenas somando todas as notas e dividindo pelo número de avaliações. O próprio desempenho do aluno deve ser levado em conta. Isto, infelizmente, os professores não percebem...

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    1. Kherian

      Lamentavelmente a tradição por aqui em avaliações de matemática é muito diferente do que você expôs acima. Este confronto de ideias é algo que faz muita falta. A maioria de meus alunos, por exemplo, tem redação péssima. E certamente encontram enorme dificuldade para falar em público. Mesmo assim eu gostaria de fazer uma ressalva: é importante a capacidade de argumentação não apenas entre pares acadêmicos ou profissionais, mas também com representantes de outros segmentos.

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  6. "os melhores professores são aqueles que têm as piores avaliações feitas pelos seus alunos". Aqui, não podemos esquecer dos casos "singulares" de professores com avaliações negativas e que realmente são ruins.

    Dois exemplos que presenciei: 1) O professor, que já tinha uma má fama entre os alunos, lecionou uma disciplina de Cálculo Diferencial e Integral I. O mesmo passou o semestre inteiro praticamente ensinando limites. Então, no último mês de aula, resolveu ensinar derivadas rapidamente e as cobrou em avaliações. Resultado: mais de 50% da turma foi reprovada.
    2) O professor lecionou uma disciplina de engenharia de software e, apesar de ter trabalhado anos na área, não dominava o assunto e inventava conceitos sem embasamento algum, algo que ficava claro ao consultar a bibliografia. Sua aula era uma doutrinação e os alunos não tinham liberdade de pensamento: se não fizesse do jeito dele, então estava errado. Consequentemente, o resultado foi uma taxa de reprovação de cerca de 60% da turma.

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  7. Gosto do seu Blog, mas penso que o senhor pode ter sido irresponsável em expor o caso com sua aluna aqui. Não é difícil para alguém mal intencionado descobrir quem é a profissional e usar isso como forma de prejudicar essa pessoa, sem falar na responsabilidade pessoal do senhor do ponto de vista de tribunais de ética, responsabilidade civil e penal.

    Forte abraço.

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    1. Nossa. Isso sim é o domínio do medo. Seria fascinante um processo na justiça contra uma jovem que claramente demonstrou competência em uma excelente instituição norte-americana e em uma empresa do porte da AmBev, independentemente de qualquer influência minha. Seria igualmente fascinante um processo na justiça contra mim, ainda mais levando em conta que professores em nosso país não contam com código de ética algum. Medo é algo que realmente domina este nosso país. Coisa horrorosa.

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  8. Um aspecto que também mereceria destaque, ao meu ver, é o papel da avaliação na aprendizagem: a avaliação não é apenas um instrumento de medição, mas também um instrumento que ajuda no aprendizado do aluno, por fatores diversos, incluindo a oportunidade de feedback (para o aluno, e também para o professor). Acho que o comentário do Kherian sugere isso, e que o próprio Desidério enfatizaria. Independentemente disso, parabéns pela postagem!

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    1. Marcelo

      A questão que você levanta é tema que há algum tempo planejo discutir por aqui. Mas ainda faltam dados.

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  9. É fora do tema, mas é uma informação curiosa. Fomos ultrapassados por Moçambique? http://www.rtp.pt/noticias/mundo/tres-quartos-de-teses-nas-principais-universidades-mocambicanas-contem-plagios-estudo_n845544

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    1. Ótima pergunta. Grato pela informação. Farei a divulgação.

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  10. Uma dúvida: como ela conseguiu pagar a Universidade de Miami?

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    1. Não tenho ideia, Adolfo. Mas, se quiser, posso colocá-lo em contato com ela. Basta enviar e-mail para adonai@ufpr.br.

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  11. Acredito que no atual cenário o professor que faz uma avaliação rigorosa está sendo honesto e corajoso. Ao fazer uma avaliação rigorosa ele está se expondo a avaliações dos alunos, que normalmente é um contra-ataque à avaliação do professor. Sabemos que há casos de chefias inescrupulosas que, do alto de sua incompetência, usam tais avaliações para perseguir desafetos mais competentes que eles. Sempre se ouve aquela bobagem: "Se a turma toda foi mal a culpa é do professor que não ensinou"...... Como se não existissem deficiências nos ensinos médio e fundamental ou na nefasta política de cotas e eliminação de notas mínimas para o ingresso na Universidade. É muito mais fácil para o professor ser desonesto, aprovar a turma inteira e não ser molestado por crises de pedagorreia de algumas chefias.

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    1. Anônimo

      A forma impecável de seus argumentos mostra claramente que não é fácil avaliar. Grato pelo comentário.

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  12. Olá Professor,

    Gostaria de tirar uma duvida sobre publicações, irei submeter um artigo no qual trabalhei arduamente, agora na versão final do texto, meu orientador colocou o nome dele por primeiro, do co-orientador por segundo e o meu por ultimo (sendo que o co-orientador não teve participação neste trabalho). Minha dúvida é sobre a ordem dos nomes em publicações. É normal o nome do aluno ficar por ultimo pois estou me sentindo injustiçado com isso.

    Abraços!

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    1. Anônimo

      Este é um problema extremamente comum. A julgar pelo seu relato, é óbvio que tal situação é injusta com relação ao seu trabalho. No entanto, você se encontra em uma situação delicada, por conta de sua posição como aluno. A hierarquia naturalmente imposta pela vida acadêmica sempre coloca o aluno em último lugar. Minha recomendação é que você tente conversar com o seu orientador, caso este seja uma pessoa receptiva a críticas. Se julgar que seu orientador não é uma pessoa sensata (o que parece ser o caso), sugiro que simplesmente aceite esta situação. E, no futuro, procure se envolver profissionalmente com pessoas mais honestas.

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  13. Quando vi esta notícia lembrei-me de suas frases "Não se faz ciência no Brasil" e "A UFPR é uma universidade infame".
    http://www.ufpr.br/portalufpr/blog/noticias/renomado-cientista-graduado-pela-ufpr-esta-entre-os-cotados-para-o-premio-nobel-de-fisica/

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    1. Bem, Grebogi está na lista de grandes de nomes da ciência brasileira deste blog, já há alguns anos. Não me surpreende a indicação dele. O trabalho de Grebogi é formidável. Mas lembremos do fato de que sua carreira foi feita fora de nosso país, apesar de ter tido colaboradores até mesmo na UFPR.

      Da UFPR saíram outros nomes importantes da ciência, como Newton da Costa e Newton Freire Maia. Mas indivíduos que sabem caminhar com as próprias pernas não são propriamente mérito de uma instituição como a UFPR.

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