sexta-feira, 26 de junho de 2015

O exército dos 26 sábios adolescentes


Ciência e tecnologia de ponta são atividades humanas extraordinárias, que exigem a ação de pessoas extraordinárias. O Brasil é o maior produtor de soja do mundo graças a pesquisas realizadas em nosso próprio país. Mas ainda dependemos do desenvolvimento científico e tecnológico de nações estrangeiras, para o crescimento econômico e social do Brasil em inúmeros outros segmentos. Se uma única mulher conseguiu trazer tanta riqueza e tantos empregos ao longo de décadas para o nosso país, graças ao seu trabalho científico, imagine o que um exército de 26 jovens de extraordinário talento pode fazer pelo nosso futuro! 

Por isso publico esta postagem. As melhores universidades e institutos de pesquisa do mundo não existem apenas para alavancar elas próprias ou os países que as abrigam. Elas existem para ajudar a construir um mundo melhor. Justamente por conta disso que os grandes centros de desenvolvimento científico e tecnológico abrem as suas portas para tantos estrangeiros. O que resta saber é se países em desenvolvimento como o nosso têm interesse real no próprio crescimento econômico e social.

Sou professor universitário de uma instituição pública de ensino, com 50 anos de idade e 32 de universidade, da graduação à posição de docente. Mas isso não me impede de perceber jovens talentos com capacidade muito superior à minha, não apenas para fazer ciência e tecnologia de alto nível mas também para transformar de maneira construtiva a realidade brasileira. 

Por conta disso apelo aqui à visão de futuro de cada leitor deste texto. A Fundação Estudar selecionou 26 jovens para fazerem a diferença em nosso país. São 26 sementes prontas para germinar. E este exército de 26 precisa da visão e da colaboração de todos.

Estes 26 alunos foram aprovados para estudar em 18 das melhores universidades do mundo, incluindo Harvard, MIT, Stanford, Yale e Princeton. Veja, por exemplo, esta reportagem para detalhes. Além de terem sido aprovados, conquistaram bolsas parciais para estudar nestes centros que são referências de excelência em todo o planeta. No entanto, o acesso a educação científica e tecnológica de ponta exige dinheiro. E as bolsas parciais não cobrem despesas muito pesadas para os padrões financeiros das famílias desses 26 jovens. Por isso uma solução encontrada foi a criação da campanha de crowdfunding Aprenda lá, dá cá. O objetivo da campanha é arrecadar R$ 350.000,00 até o dia 25 de julho deste ano. Até o momento do fechamento desta postagem foram arrecadados apenas R$ 47.745,00. 

Fiquei sabendo a respeito desta campanha porque recebi e-mail de Marcos Elias Schwartz, jovem de 17 anos que faz parte deste grupo de talentos identificados pela Fundação Estudar. O e-mail dele foi motivado pelas atividades usualmente promovidas neste blog. 

Eu, por exemplo, investirei nesses jovens. Invisto não apenas com a publicação desta postagem, mas também com a promoção da mesma no Facebook e com doação para a campanha, a qual acabo de fazer. Se a promoção paga que acabo de fazer no Facebook for bem sucedida, injetarei mais dinheiro nela.

É importante observar que este blog não tem fins lucrativos. O acesso é gratuito e não se faz anúncios por aqui. Pelo contrário, há anos venho investindo tempo e dinheiro com divulgação científica e cultural, bem como críticas ao ensino de nosso país, em todos os níveis. Faço isso porque tenho fé no Brasil, apesar do gigantesco esforço que este país faz para que não se acredite nele. 

Acredito não apenas na capacidade destes 26 jovens, mas também na genuína vontade deles de retornarem ao Brasil. 

Se algum leitor deste blog tiver alguma dúvida sobre a possibilidade desses jovens retornarem, peço que leve em conta três fatos. Em primeiro lugar, eles assumem textualmente que "acumulando conhecimentos e experiências únicos em nossa bagagem, poderemos aplicá-los à realidade brasileira". Em segundo lugar, as universidades brasileiras não estão cumprindo satisfatoriamente com o papel de desenvolvimento social. E, pior, professores universitários chegam a tentar impedir que pessoas aproveitem a juventude para um trabalho honesto e altamente relevante. Ou seja, tenho esperança de que quem lê esta postagem seja mais inteligente do que muitos professores universitários de nossa nação. 

Se você, leitor ou leitora, não puder colaborar financeiramente com a campanha Aprenda lá, dá cá, que pelo menos divulgue esta postagem ou a campanha em si. Mas, se optar pela divulgação da campanha, acrescente uma frase que expresse o que você realmente pensa a respeito desta iniciativa. 

Ciência e cultura sempre dependeram de mecenato. Este é um fato histórico, no Brasil e no mundo. E qualquer pessoa pode fazer parte de um grupo que, como um todo, cumpre o papel de um mecenas.

Tanto você quanto eu acompanharemos o trabalho desses 26 adolescentes ao longo dos próximos anos. Um dia eles serão adultos, adultos profissionais. E certamente estaremos lá para comprovar que o investimento de hoje valeu a pena. 

Que não plantemos apenas soja, mas também prosperidade e, quem sabe, felicidade.

domingo, 14 de junho de 2015

Matemáticos lentos



O mais importante prêmio em matemática é a Medalha Fields. Mas, diferentemente do Prêmio Nobel, que abrange áreas científicas como medicina, física e química, a Medalha Fields tem um limitante de idade. Esta premiação jamais pode ser entregue a matemáticos com mais de quarenta anos. Existe, nesta iniciativa, uma boa intenção: o estímulo aos mais jovens, para produzirem matemática de alto nível. Mas há também uma visão perigosamente estreita sobre produção científica, a qual pode levar a crer que todas as grandes contribuições em matemática são feitas por mentes campeãs nos "cem metros rasos". No entanto, há uma respeitável quantia de matemáticos importantes com o perfil mais próximo de maratonistas. 

Espero que o leitor não entenda mal o que critico aqui. Prêmios não são o mais importante estímulo para alguém fazer matemática. É a ciência em si que realmente estimula matemáticos e também aqueles que desejam fazer matemática. No entanto, este limitante de idade na Medalha Fields definitivamente influencia políticas de estímulo no estudo e desenvolvimento desta ciência formal. Muitos exemplos são encontrados nas inúmeras olimpíadas de matemática em nosso país e fora do Brasil. Outros são encontrados em instituições de alto nível, como o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA). Se um jovem estudante não demonstrar rapidamente a capacidade de desenvolver matemática de forma ágil, ele muito provavelmente será descartado pelo IMPA. Já vi isso acontecer muitas vezes. 

Neste contexto, a expressão "Olimpíadas de Matemática" não deixa de ser irônica. Afinal, nos Jogos Olímpicos existem ambas as modalidades de corrida: cem metros rasos e maratona olímpica. Cito o fenomenal exemplo de Joan Benoit Samuelson, campeã da primeira maratona olímpica feminina, realizada em 1984. Atualmente, com 57 anos de idade, ela ainda participou da Maratona de Boston, nos Estados Unidos. Quantos corredores de cem metros rasos realizaram uma façanha dessa natureza? 

O que apresento a seguir é uma modesta lista de matemáticos que não tiveram tanta pressa. Espero que esta lista sirva de estímulo para todos aqueles que sonham com o desenvolvimento de importantes avanços matemáticos, mesmo que não tenham a capacidade de resolver rapidamente problemas difíceis nesta área do conhecimento. 

Godfrey Harold Hardy foi um matemático britânico de grande destaque e que defendia a ideia de que os últimos anos da vida profissional de um matemático seriam mais proveitosos escrevendo livros. Na visão de Hardy, matemática é uma atividade para jovens. Na lista abaixo é possível encontrar contra-exemplos para essa visão. 

Joan Birman (coincidência, não?) concluiu sua graduação em matemática aos 21 anos e o mestrado aos 23. No entanto, houve um considerável intervalo de tempo entre o término do mestrado e o início do doutorado. Foi somente aos 41 anos de idade que ela se doutorou no Instituto Courant. À primeira vista isso soa como uma carreira acadêmica sem consistência, sem continuidade honesta. No entanto, hoje ela é uma das mais conhecidas algebristas ainda em atividade. Com seus 88 anos de idade, Birman é professora emérita da Universidade Columbia, em Nova York. Com quase oitenta artigos científicos publicados desde a conclusão de seu doutorado, ela conquistou diversos prêmios nos Estados Unidos, Itália, Reino Unido, França e Israel. E é atualmente bolsista da Simons Foundation. Birman também orientou vinte e uma teses de doutorado, estendendo seu legado científico para as novas gerações.

Alice Roth se doutorou aos 33 anos, em 1938. Em sua tese, Roth apresentou um exemplo de espaço compacto (conceito central em topologia) com importantes implicações na teoria de aproximações. No entanto, apesar de um certo furor temporário em seu país natal (Suíça), este resultado caiu no esquecimento. Ela abandonou a pesquisa e se tornou professora de ensino básico. O mesmo resultado da tese de doutorado de Roth foi redescoberto posteriormente e de maneira independente na década de 1950, por um matemático russo. Foi quando Alice Roth se aposentou, aos 66 anos de idade, que ela decidiu retornar à pesquisa. O resultado foi uma sequência de quatro artigos importantes sobre teoria de aproximações, sendo que apenas um foi escrito em parceria. Em virtude disso, aos 70 anos, ela foi convidada para apresentar uma palestra na Universidade de Montreal. Dois anos depois morreu de câncer.

Karl Weierstrass é um dos exemplos históricos mais marcantes de indivíduo que começou a se dedicar muito tarde aos estudos de matemática. Seu pai o forçou a estudar lei e comércio, durante a sua juventude. Weierstrass faltava às aulas na Universidade de Bonn, recebia notas muito baixas em avaliações e era um ávido consumidor de cerveja. Retornou para casa sem título algum. Para se sustentar financeiramente, começou a lecionar matemática, física, botânica, alemão e até ginástica para crianças de escolas em cidades pequenas. Mas aproveitou as suas noites para procurar contato com diversos intelectuais, incluindo o matemático Niels Henrik Abel. Aos 39 anos finalmente publicou seu primeiro artigo de matemática, sobre funções abelianas. Resultado: tornou-se o mais importante analista de sua época. Hoje o nome de Weierstrass é um dos pilares da análise matemática. O teorema que leva o seu nome foi demonstrado quando Weierstrass tinha 70 anos.

Muito famosa é a carta de recomendação que Stephen Smale recebeu de Raymond Wilder, então Presidente da American Mathematical Society. Wilder considerava Smale um aluno medíocre que, repentinamente, se revelou como uma boa promessa. Na carta de recomendação Wilder explica essa transformação como consequência do recente casamento de Smale. Chega até mesmo a tecer significativos elogios à esposa de seu conhecido aluno. Essa é uma percepção muito interessante, pois se refere a uma forma de estímulo pessoal. O resultado é bem conhecido: Smale conquistou a Medalha Fields, em virtude de suas fenomenais contribuições em topologia.

Eugène Ehrhart concluiu o ensino médio aos 22 anos! Isso sim soa como um caso de mediocridade intelectual! Foi professor de matemática em escolas francesas de ensino médio durante décadas. Investia em pesquisas matemáticas apenas por prazer, sem se preocupar com publicações. Obteve seu doutorado aos 60 anos de idade. Foi nesta época que ele realizou suas contribuições mais importantes na interface entre álgebra e geometria. Para detalhes, ver o polinômio de Ehrhart.

O romeno Preda Mihailescu obteve seu doutorado aos 42 anos. Mas foi somente aos 47 anos de idade que ele provou a Conjectura de Catalan, um problema sobre equações diofantinas que ficou em aberto durante 158 anos.

Aos 59 anos o engenheiro Kurt Heegner publicou um artigo sobre teoria dos números que somente foi reconhecido como essencialmente correto e de extrema importância quase duas décadas depois. Este reconhecimento a respeito de seu único artigo publicado sobre teoria dos números ocorreu quatro anos após a sua morte.

Uma das mais conhecidas contribuições de Andrei Kolmogorov foi realizada quando ele tinha 54 anos, ao resolver uma das possíveis interpretações do décimo terceiro problema de Hilbert. Na mesma época ele criou aquilo que hoje se conhece como teoria da complexidade de Kolmogorov. 

Outros nomes poderiam ser citados aqui, como Leonhard Euler, Marina Ratner, Sergei Novikov, Oscar Zariski, entre muitos. A questão é que o conhecimento sobre o passado também é uma forma de alimentar esperança sobre o futuro.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Mais um exemplo insano de ensino a distância


Aviso Importante: O site Descomplica substituiu todos os vídeos analisados nesta postagem por um comercial de televisão. Fui informado sobre isso no dia 03/04/2017.
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Recentemente recebi um e-mail, de um colaborador de pesquisa, sobre o site Descomplica. Trata-se de uma iniciativa de ensino a distância, cuja meta é preparar pessoas para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e vestibulares. A proposta é "Descomplicar as matérias para os alunos que tem dificuldades e para aqueles que querem relembrar alguns assuntos." Sim, há vários erros de português no site. Mas não quero discutir aqui sobre o insistente desrespeito à língua oficial de nosso país. Quero apenas fazer uma lista de alguns dos graves problemas que encontrei em vídeos disponibilizados gratuitamente pelo Descomplica.

Falta de roteiros. Claramente os vídeos que examinei não seguem qualquer roteiro. Um exemplo que ilustra o que digo está neste vídeo sobre conjuntos. O apresentador afirma "Conjunto é. A primeira dificuldade que a gente tem em falar sobre esse tema [...]". Outro exemplo que ilustra a falta de roteiros para a gravação dos vídeos está aqui. O apresentador, diante de uma lousa, improvisa após três minutos e vinte e três segundos, apagando com uma das mãos parte do que já estava escrito com giz. Ou seja, esses vídeos são meras gravações de aulas típicas. Nada de novo oferecem, em termos de linguagem, para alunos que já bem conhecem as improvisações de professores em sala de aula. Este é um problema recorrente em muitos vídeos destinados ao ensino a distância espalhados em diferentes endereços da internet. Todo vídeo educativo sério precisa de roteiro! Isso é básico!

Erros e inconsistências. Conteúdos de matemática divulgados no site Descomplica estão gravemente errados e, por vezes, são até inconsistentes. Neste vídeo, por exemplo, o suposto professor que introduz a noção de função, confunde os elementos de um produto cartesiano entre dois conjuntos A e B com o conceito de relação, em teoria de conjuntos. Chega a afirmar que o número total de relações entre um conjunto A com três elementos e um outro conjunto B com três elementos é nove, sendo que o número total de possíveis relações entre esses dois conjuntos é a cardinalidade da potência de A cartesiano B, ou seja, 512. Com efeito, uma relação entre um conjunto A (domínio) e um conjunto B (co-domínio) é qualquer subconjunto do produto cartesiano entre A e B. Já neste vídeo o apresentador afirma que ponto, em geometria, não tem tamanho. Logo em seguida afirma que ponto tem tamanho zero. Afinal, ponto tem tamanho ou não? "Vermelho" é um conceito sobre o qual não faz sentido aplicar qualquer noção de tamanho. Neste sentido, vermelho não tem tamanho. Mas também não faz sentido dizer que o tamanho de vermelho é zero. Além disso, afirmar que ponto, em geometria, tem tamanho zero é um disparate. Essa ideia está em completo desacordo com a atual visão matemática sobre geometria.

Falta de seriedade. Neste vídeo um bando realmente ruidoso, desorientado e confuso faz piadas, danças e gestos que nada têm a ver com educação. No mesmo vídeo uma equação é escrita na lousa e um dos "profissionais" se refere a ela como equação de movimento uniforme, sem qualificar os termos empregados. Ou seja, além de passar a ideia de que matemática é uma atividade de palhaços, ainda sugere que somente palhaços dogmáticos podem compreender este ramo do conhecimento.

Falta transposição de conhecimentos. Neste vídeo o apresentador afirma que, no estudo sobre conjuntos, existem três noções primitivas: conjunto, elemento e pertinência. Obviamente ele demonstra jamais ter lido tratados originais sobre o tema, pois ignora o papel fundamental da noção de igualdade. Georg Cantor, criador da teoria de conjuntos, dizia que um conjunto é uma coleção de objetos distintos entre si. Ou seja, apesar de Cantor jamais ter definido o conceito de conjunto, ele deixou clara a importância da igualdade. Se x e y são objetos distintos, isso significa que não é o caso de x = y. Esta visão é fundamental para definir par ordenado como um caso particular de par não ordenado. E, sem a noção de par ordenado, não se pode qualificar relações e funções, pelo menos do ponto de vista conjuntista usual. O que se fez neste e em outros vídeos do site Descomplica foi uma mera repetição (repleta de ruídos) de erros persistentes em salas de aula de nosso país. Os criadores desses vídeos jamais se deram ao trabalho de transpor conhecimentos avançados de matemática para uma linguagem acessível a adolescentes. O apresentador também afirma que noções primitivas, em matemática, são simplesmente aceitas. Isso confere um caráter esotérico à matemática, algo que definitivamente nada tem a ver com esta ciência. Mais assustador ainda é o fato do apresentador afirmar que todo mundo sabe o que é um conjunto. Bem, ele mesmo não sabe! Se soubesse, não teria afirmado que não existe definição formal para conjunto

Doentio desestímulo à interdisciplinaridade. Neste vídeo sobre filósofos pré-socráticos a apresentadora afirma não gostar de Pitágoras. O argumento é realmente doentio. Ela diz que Pitágoras gostava de números. Como ela mesma confirma não gostar de números, portanto não gosta de Pitágoras. Segundo essa suposta professora de filosofia, números servem somente para numerologia e para contar dinheiro. Ou seja, temos aqui um vídeo de ensino a distância que promove não apenas o ignorante distanciamento entre matemática e filosofia como também procura ridicularizar um dos pensadores mais influentes da história. Os vídeos sobre matemática no site Descomplica são terríveis. Mas os vídeos sobre filosofia são de uma miséria intelectual como raras vezes testemunhei em toda a minha vida. Até mesmo o vocabulário empregado é chulo e, portanto, inadequado para fins de educação filosófica. 

Mais de dois anos atrás publiquei neste blog uma postagem sobre duas empresas que vendem teses de doutorado. O site original de uma delas já sumiu. O outro continua. Dei a ambas o direito de resposta neste blog. O mesmo farei com o Descomplica. No momento em que esta postagem for publicada, encaminharei este link para o serviço Fale Conosco, do Descomplica. Se algum leitor deste blog quiser colaborar com mais críticas ao Descomplica, peço que o faça. Não tive paciência para acompanhar todos os vídeos. Há uma quantia absurda de insanidades nos poucos que vi. 

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Beleza


Esta é uma postagem diferente do usual, sobre o mais relevante e difícil tema existente para se discutir: beleza. Por um lado, nada é mais importante do que o belo. Por outro, nada é mais misterioso do que o conceito de beleza. 

Mais de dez anos atrás participei de uma reunião com amigos, na qual foi lida uma tradução para o português do poema The Raven, de Edgar Allan Poe. A pessoa que se dispôs a recitar esta consagrada obra da literatura considerava a si mesma como um poeta. No entanto, esta mesma pessoa achou o poema cansativo. Portanto, para este indivíduo, O Corvo não encerra beleza alguma. Para mim, nenhum outro texto escrito é tão belo, nem mesmo em matemática.


Também já conheci cinéfilos que simplesmente não conseguem apreciar o filme 2001 - Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, o único gênio que existiu no cinema. Mas, para mim, nenhuma outra obra cinematográfica é tão bela quanto esta película lançada em 1968. Chego ao ponto de dizer para amigos e familiares que classifico o cinema em apenas duas categorias: 2001 e o resto. 


Então, fica a questão: o que é o belo? 


Existem, literalmente, milhares de tratados filosóficos sobre estética e o problema do belo. Mas não estou com a mais remota inclinação de transformar esta postagem em alguma pretensiosa síntese da literatura especializada sobre o tema. Pelo contrário, quero fazer aqui apenas algo que possa ser sentido pelo leitor como belo. 

No entanto, qualquer impressão pessoal minha sobre o belo não passa de uma visão estreita e míope, que eventualmente pode ser compartilhada por alguns leitores igualmente míopes e contestada por outros leitores ignorantes sobre a própria miopia intelectual. 


Então, como discutir sobre o belo sem apelar à filosofia e sem apelar a uma mera visão pessoal? 


A solução que encontrei foi uma e apenas uma: traduzir e transcrever as palavras de um dos mais importantes artistas do século 20 e provavelmente o único que sustenta em sua arte uma tradição com mais de dois mil anos, ao mesmo tempo em que foi extraordinariamente inovador. O nome que escolhi foi Vangelis. Por que escolhi este artista? Porque sinto que suas palavras são cristalinamente honestas e extraordinariamente relevantes, além de intrinsecamente belas.

A música de Vangelis é bela, por conta de vários motivos. Cito apenas dois. Por um lado, Vangelis sempre deixou claro em sua arte que ele mesmo jamais criou uma única música. Vangelis simplesmente capturou a harmonia que já estava lá. Bastava ouvi-la e reproduzi-la. E, por outro lado, este compositor grego tem o seu nome associado a obras já imortalizadas (pelo menos enquanto existir qualquer civilização humana), incluindo as trilhas musicais de grandes filmes, como Carruagens de Fogo, Blade Runner e 1492 - A Conquista do Paraíso.


Seguindo a tradição grega dos grandes pensadores do passado, Vangelis nunca tentou projetar a si mesmo, mas apenas a arte sustentada pela própria arte. Por conta disso, entrevistas com ele são raras. Pouco se sabe sobre a sua vida pessoal. E, de fato, a vida pessoal de um legítimo pensador é absolutamente irrelevante. O que interessa em um pensador é o que ele faz. E o que um pensador faz é expressar seus pensamentos e sentimentos, nada além disso. 


Vangelis é um profundo pensador. Mas é um pensador no sentido mais amplo possível da expressão. A linguagem empregada por este genuíno cultivador da beleza é usualmente música, uma linguagem que consegue congregar pessoas de diferentes persuasões políticas, religiosas, sexuais e sociais. 


Se o leitor desta postagem não for capaz de sentir as palavras aqui transcritas de uma entrevista com Vangelis, que pelo menos tente sentir a beleza de sua música. E se nenhuma dessas alternativas funcionar, rogo para que busque e cultive a beleza em outras fontes. Mas, sem o contato com o belo, a vida simplesmente carece de qualquer sentido. 


Dentro de minhas próprias limitações pessoais sobre o que consigo perceber como belo, reproduzo abaixo as palavras que Vangelis pronunciou nesta que pode ser muito bem a sua última entrevista. Afinal, este inigualável compositor já está com 72 anos de idade. 


A entrevista foi concedida ao repórter Tony Harris e transmitida pela Al Jazeera, a maior emissora de televisão jornalística do Catar. A ocasião foi um evento organizado pela United Nations Alliance of Civilizations (UNAOC), uma iniciativa política concebida em 2005 pelo ex-Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Trata-se de um grupo de alto nível cuja missão é explorar as raízes da polarização entre sociedades nos dias de hoje. O evento organizado pela UNAOC, no qual Vangelis participou, foi realizado em 2011. Segue abaixo uma transcrição de uma tradução livre dessa entrevista. Até onde sei, esta é a primeira vez que tal entrevista é transcrita. 

Meu objetivo aqui é simplesmente disponibilizar em língua portuguesa uma entrevista que não se sustenta na razão, mas no sentir. Ou seja, não há na entrevista abaixo qualquer ponto sobre o qual se possa concordar ou discordar. E espero que o leitor concorde com isso. Basta sentir.

Desejo a todos uma leitura inspiradora.

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Entrevista de Vangelis concedida a Tony Harris
transcrição livre de Adonai Sant'Anna

Vangelis: Acima de tudo, precisamos investir em beleza. Isso porque beleza é harmonia, que vem do caos. No entanto, investimos no caos. Por que investimos no caos? Porque caos é muito mais lucrativo do que paz. Você olha ao redor e percebe que nada é guiado por beleza, seja arquitetura, arte ou o que for. Tudo é destruído. A beleza é como uma válvula de segurança para as pessoas. O mesmo se pode dizer da música. Mas a música de hoje não é bela. A música de hoje é apenas uma maneira para promover publicidade para outras coisas. Isso porque a música tem grande poder. E, através da música, podemos promover publicidade sobre o que quisermos. 

Tony Harris: Você viveu a década de 1960. E aquela época foi marcada por muita música. Você pode dizer que a música dos anos 60 foi muito boa ou que não foi tão boa assim. Mas você acha que hoje em dia há alguma chance de surgir música de qualidade excepcional?

Vangelis: Eu não sei. Como você disse, houve muita música. Muita música que eu poderia chamar de música inocente ou música fabricada, e então passamos para uma música manufaturada durante muitos e muitos anos. As gravadoras ficaram muito famintas e a música se tornou um produto. A gravação de música se transformou em uma indústria. O que eu posso dizer? Há alguma coisa errada nisso tudo. 

Tony Harris: Claro, mas ainda assim você era parte deste sistema. Foram 50, 51, 52 álbuns seus gravados.

Vangelis: Sim e não. Quando comecei eu tinha a impressão de que, alcançando sucesso, o que felizmente foi o meu caso, eu poderia fazer algo diferente. Mas quanto mais se atinge o sucesso, mais nos tornamos prisioneiros do sistema. As gravadoras não permitem fazer algo diferente. 

Tony Harris: O sucesso não compra maior liberdade?

Vangelis: Não. Ao contrário.

Tony Harris: Explique isso! Eu imaginei que, ao conquistar sucesso, você poderia dizer: "Não, eu não vou fazer isso. Eu não vou pegar a estrada e me apresentar em cem cidades durante cem dias."

Vangelis: Olha. Você se torna um produto. A gravadora investe neste produto. Se você é dono da Coca-Cola e deseja mudar o sabor do refrigerante, o que você fará? Você manterá este sabor até o dia de sua morte. Por isso as pessoas continuam fazendo as mesmas coisas o tempo todo! E isso é ridículo. Eu não comecei esta carreira para me tornar um pop star. Eu estava tentando fazer algo. E tive que lutar comigo mesmo e não com os outros. E isso é algo muito difícil, extremamente complicado. Meu interesse é pela música e não ficar famoso.

Tony Harris: Mas você se transformou em uma estrela. Como isso mudou a sua vida? Como isso limitou as suas escolhas?

Vangelis: Limitou as minhas escolhas de expressão. Minhas escolhas para comprar um belo carro ou uma bela casa não foram limitadas. Mas este não é o objetivo. Não é este o propósito. Durante a minha juventude eu achava que o sucesso permitiria fazer mais. Mas não foi o que aconteceu. Permita-me colocar de outra maneira. Você tem a música e tem o compositor. Quem comanda quem? Se a música dirige o compositor, o resultado será honesto e saudável. Se o compositor comandar a música, o resultado será desonesto e industrial. A música é o que há de mais importante. 

Tony Harris: Eu adoro as histórias sobre o seu passado. E fico imaginando se elas não se tornaram lendas urbanas. Adoro as histórias sobre como você foi iniciado à música. Como foi isso? Foram sons que despertaram o seu interesse? Você foi apresentado para o piano? Você encontrou o piano? O que foi que aconteceu? A música encontrou você ou foi você que encontrou a música?

Vangelis: Eu não lembro. Apenas recordo estar sentado à frente de um piano. 

Tony Harris: Só isso?

Vangelis: Só isso. Até hoje não sei como explicar. 

Tony Harris: Isso é incrível. Existem várias pessoas que tiveram carreiras impressionantes sem qualquer educação formal. E você é uma delas. Você teve uma carreira musical incrível e sem formação alguma. Ou seja, como você explica o seu processo criativo, no sentido de ser um veículo para a condução da música? 

Vangelis: Usamos o termo "educação formal" para nos referir a escolas de música. Minha educação formal foi a natureza. Meu professor foi a natureza. Meu professor foi a música.

Tony Harris: O que isso significa, Vangelis?

Vangelis: Eu converso com você e vejo música. Eu sou música. Todos são música. É uma equação matemática. É a maneira como você vê as coisas, como você sente as coisas. Ir a uma escola não significa que você se transformará em um músico. A maioria das escolas ensina repertório, mas não música. Música é algo diferente. Não é o que as pessoas pensam. Hoje em dia as pessoas distorcem muitas coisas importantes. Falam sobre paz e distorcem isso. Falam sobre amor e o distorcem. Falam sobre música e distorcem a música. Todos deveríamos pensar de vez em quando, talvez à noite, quando estamos sozinhos. Deveríamos pensar o que é música, o que é amor. Mas não deveríamos pensar nos clichés sobre essas ideias. 

Tony Harris: Então você pensa profundamente sobre esses assuntos?

Vangelis: Claro! São estes os assuntos mais importantes! 

Tony Harris: E você chegou a alguma conclusão sobre música e amor?

Vangelis: Certamente! É o que estou dizendo desde o início. Meu professor de música é a natureza. Minha conclusão é que música e natureza são a mesma coisa. O universo é música. Você é uma galáxia. Eu sou uma galáxia. Tanto faz se examinar o universo com um microscópio ou um telescópio, você verá exatamente a mesma coisa. Música não é pegar uma guitarra e fazer shows para ficar famoso. E também fico perturbado com essa obrigação de fazer sucesso. Por que eu devo fazer sucesso? 

Tony Harris: Porque você precisa alimentar o sistema.

Vangelis: Agora sim você está falando.

Tony Harris: E você está me arrastando para o seu ponto de vista.


Intervalo

Tony Harris: Por que você aceitou este convite para abrir o incrível anfiteatro de Catar?

Vangelis: Eu aceitei porque é muito raro ver um país que parece ter interesse em educação, artes, ciência e cultura. Na minha opinião esta é a chave para combater a crise de hoje. Sempre se fala em crise, crise, crise. Isso não é novidade. A crise econômica não é tão importante quanto a crise cultural. Quando se lida com cultura, educação, ciência e artes, todo o resto fica mais fácil. Eu queria apoiar esta iniciativa [em Catar]. Além disso, fiquei muito impressionado com este teatro em estilo grego. Eu prefiro esses teatros retangulares. Eles se parecem com caixas de som. E ver um teatro novo traz esperança. Em meu país existem muitos teatros. Mas isso vem de tempos remotos. Mesmo em meu país não se constroem mais teatros assim. A moda é construir lugares nos quais ninguém se sente especial quando entra. Você não sente que verá algo especial nos novos teatros. Então, por que ir ao teatro?

Tony Harris: Pelo que entendi, quando você aceitou este convite, alguns de seus amigos e colegas o acompanharam. 

Vangelis: Sim. Temos uma ótima equipe. Angela, Roberto, Jeremy. Está sendo ótimo.

Tony Harris: Você está novamente trabalhando com Hugh Hudson, certo?

Vangelis: Sim. Tem sido um grande prazer. Desde Carruagens de Fogo que não trabalhamos juntos. Ele está sendo responsável por toda a ambientação. Tem sido realmente ótimo.

Tony Harris: O que o motiva hoje em dia? Certamente este projeto aqui em Catar o motivou. Você compôs música original para o evento. Mas o que o motiva a compor hoje em dia?

Vangelis: Eu crio música todos os dias. Mas para este evento aqui em Catar eu criei música porque, pela primeira vez, vi um país demonstrar interesse por algo que considero como o que há de mais necessário para todas as pessoas. Toda a miséria que existe nos dias de hoje é por conta da ausência de beleza. E beleza é qualidade de vida. E qualidade de vida não é dinheiro, é algo diferente. Por exemplo, civilização não é tecnologia. Naturalmente não tenho nada contra tecnologia. Mas você consegue imaginar alta tecnologia entre pessoas não civilizadas? É algo muito perigoso. Ou seja, a partir do momento em que Catar está tentando fazer algo dessa natureza, eu tenho que apoiar essa iniciativa. Afinal, isso faz parte de minhas crenças. E mesmo que isso [o investimento nas artes, na ciência, na educação e na cultura] jamais aconteça, nós temos que ajudar. Todos temos que ajudar. E espero que aconteça.

Tony Harris: Você sente necessidade de produzir mais álbuns? 

Vangelis: Não. Eu componho música todos os dias. 

Tony Harris: Você não tem necessidade de expor seu trabalho na internet ou outros meios? Não tem vontade de ser ouvido pelas pessoas, de compartilhar seus sentimentos ou suas ideias? Não tem necessidade de influenciar pessoas em favor do mundo que você gostaria de ver?

Vangelis: Bem, compartilhar é importante. Mas, como eu disse, não quero me impor. A partir do momento em que você entra no sistema, você precisa se impor. É um jogo muito perigoso. Essa postura é contra os meus princípios. Colocar-me em uma posição em que, por um lado, fazem exatamente o contrário daquilo em que acredito e, por outro, tento manter o equilíbrio... É uma situação muito complicada.

Tony Harris: Falando em compartilhar, devo dizer que passei algum tempo com você. Você tem uma vida maravilhosa. 

Vangelis: Como você sabe disso?

Tony Harris: Bem, isso é fácil. Posso dizer a partir do que ouvi das pessoas que o cercam. Elas me fazem crer que você tem uma vida maravilhosa. Fico pensando por que você não compartilha isso. Você não tem Facebook, nem Twitter. Você não compartilha aquilo que vejo como uma vida maravilhosa de amizades, de amor, de conquistas profissionais.

Vangelis: Eu não quero inundar pessoas com a minha pessoa. Existem problemas o suficiente no mundo. Eu prefiro fazer o meu trabalho, compor música. Se alguém quiser ouvir a música, não há problema. Se eu puder ajudar, como posso e como estou fazendo agora, com essa gente sensacional de Catar, o que mais posso fazer? Eu também pinto quadros, fico feliz com isso e assim tento manter o equilíbrio. 

Tony Harris: Se eu lhe pedisse para compartilhar comigo os melhores momentos de sua carreira como compositor, o que você diria? Eu penso nos filmes. Talvez você não concorde. Mas penso em Blade Runner, talvez Alexandre. Quais foram os melhores momentos?

Vangelis: Agora você está falando sobre música para cinema. 

Tony Harris: Sim. Música para cinema.

Vangelis: Bem, Blade Runner foi muito importante, pois foi um filme profético. Trabalhei neste projeto porque senti que estamos seguindo este caminho. 

Intervalo

Tony Harris: Quais são os seus momentos mais felizes?

Vangelis: Oscar Wilde dizia que não existe felicidade, mas apenas momentos de felicidade. E esses momentos de felicidade podem acontecer em qualquer lugar, em qualquer momento. Às vezes você sabe o motivo, às vezes não sabe. Quando estou com música, sou muito feliz. Quando estou com pessoas que amo, sou feliz. Quando estou com saúde, sou feliz. Quando vejo pessoas sorrindo, sou feliz. Isso tudo depende de muitas coisas. Mas eu não sou infeliz. 

Tony Harris: Legado. Há muito trabalho ainda pela frente, eu sei. Mas como você quer que as pessoas lembrem a sua obra? O que você deseja que elas aproveitem de sua obra?

Vangelis: Eu prefiro deixar que as pessoas decidam o que elas preferem. Outra questão que surge a partir de sua pergunta é que o trabalho que pessoas conhecem representa um percentual muito pequeno daquilo que componho. Porque, em geral, as pessoas conhecem aquilo que foi lançado por gravadoras ou pela indústria cinematográfica. Existem muitas peças sinfônicas que compus e que jamais foram lançadas. Então, não há como eu escolher o que as pessoas devem preferir. Se elas preferirem algo de meu trabalho, tudo bem. Mas podem não querer nenhuma das minhas músicas. Como saber?

Tony Harris: Oh, mas elas continuarão ouvindo muitas de suas músicas. Vangelis, elas continuarão a ouvir.

Vangelis: Como você sabe disso? Tudo o que espero das pessoas é que elas tratem a música com mais respeito. Só isso. Quanto a mim, nada espero. 

Tony Harris: Agradeço pelo seu tempo. 

Vangelis: Grato.

domingo, 7 de junho de 2015

Matemática e Poesia


Alice no País das Maravilhas é uma das mais célebres obras literárias da história. A Rainha Victoria ficou tão fascinada com aquele magistral livro de Lewis Carroll, que chegou a insistir com o autor para que lhe enviasse sua próxima obra, assim que estivesse pronta. Imagine a surpresa da Rainha do Reino Unido ao receber o livro Um Tratado Elementar Sobre Determinantes

Acontece que Lewis Carroll era pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, matemático da Universidade de Oxford, que fez contribuições em geometria, álgebra e lógica. No entanto, Dodgson era também poeta, romancista e foi ainda pioneiro na arte de fotografar crianças.

Além disso, Carroll publicou jogos e charadas que, através de versos, procuravam instigar o estudo de matemática entre crianças. Este matemático de Oxford era um mestre na combinação de literatura nonsense com lógica clássica. Ele empregava ideias absurdas para que seus leitores não fossem influenciados por seus próprios preconceitos, no momento em que tentassem resolver charadas. Um exemplo é o enigma abaixo:


Todos os bebês são ilógicos. Ninguém é desprezado, se pode lidar com um crocodilo. Pessoas ilógicas são desprezadas. 



Usando a transitividade da condicional e a noção de contrapositiva, é possível inferir novas afirmações no universo (induzido) de pessoas: "Nenhum bebê pode lidar com um crocodilo" ou "Qualquer um que possa lidar com um crocodilo não é um bebê".

Uma avaliação detalhada deste e de outros exemplos da literatura de Lewis Carroll se encontra neste link

Cai Tianxin, da Universidade Zhejiang (China), publicou em Notices of the American Mathematical Society, um excepcional artigo sobre matemáticos e poetas, traçando inspirados paralelos entre ambos. Ele apresenta matemáticos e poetas como inigualáveis profetas das culturas humanas. Citando William Faulkner, Tianxin defende a tese de que todo romancista é um poeta fracassado. E sugere que físicos são cientistas que gostariam de ser matemáticos. Afinal, apesar de físicos não serem tão modestos quanto Faulkner, eles dependem fundamentalmente de intuições matemáticas para inferir leis físicas a partir de meras observações empíricas. 

Tianxin traça também um paralelo histórico entre poesia e matemática. Os Elementos de Euclides e a Poética de Aristóteles nasceram quase simultaneamente, delineando uma nova fronteira cultural na civilização humana. O que Tianxin percebe de elemento comum a essas duas obras é a mimetização do mundo que nos cerca. Euclides reproduzia formalmente (para os padrões da época) uma realidade físico-geométrica. Aristóteles, por outro lado, estabelecia formalmente (para os padrões da época) as bases para a arte e a literatura grega. Essas duas manifestações culturais buscavam por formas de compreensão da realidade através do intelecto, da abstração de exemplos concretos. 

Outro exemplo discutido por Tianxin é o nascimento da arte moderna, representada por Poe e Baudelaire, paralelamente ao surgimento das geometrias não-euclidianas de Lobatchevsky e Bolyai. Até mesmo topólogos chegam a citar o poeta Henry Longfellow, em uma alusão a luvas feitas de pele de animais: 


Para ter o lado quente por dentro, coloque o lado de dentro (do couro) para fora; para ter o lado frio para fora, coloque o lado quente (do pelo) para dentro.


Poesias comumente atendem a padrões matemáticos definidos por métricas e rimas. E, apesar de Edgar Allan Poe estabelecer explicitamente que o valor de um poema reside em sua capacidade de elevar a alma (algo que se poderia dizer também sobre o valor de teorias matemáticas), nem sempre poetas demonstraram simpatia pela matemática. Bem pelo contrário, Poe parecia nutrir um sentimento de amor e ódio com relação a matemática e ciências em geral.

Outro exemplo muito conhecido é o de Johann Wolfgang von Goethe, que considerava sua própria visão científica não apenas mais importante do que a de Isaac Newton, como também mais importante do que suas criações literárias ficcionais.

E, falando em obras ficcionais, há um site na internet dedicado à compilação de textos de ficção matemática, algo como um ramo da ficção científica. Quaisquer contribuições a este site são bem-vindas pelo seu mantenedor.

Um dos aspectos mais trágicos em comum entre poesia e matemática é o fato de que essas manifestações culturais estão entre as menos apreciadas e compreendidas pelas civilizações humanas. Matemática é notoriamente o ramo menos citado na literatura científica. E, apesar de poesia ser considerada o mais antigo gênero literário, é certamente o gênero menos cobiçado por leitores do mundo todo, os quais usualmente preferem prosa, drama, textos não-ficcionais e mídia.

Então, a grande questão é a seguinte: É possível um indivíduo ser um grande matemático e um grande poeta? 

Os matemáticos Lorenzo Mascheroni e Augustin-Louis Cauchy até poderiam ser enquadrados como poetas, apesar de não terem se destacado nesta arte. E, assim como Lewis Carroll, o poeta chileno Nicanor Parra chegou a lecionar matemática, apesar de não ter feito qualquer contribuição remotamente relevante neste ramo do conhecimento. Segundo Cai Tianxin, o único ser humano, em toda a história, a se destacar tanto em matemática quanto em poesia, foi o persa Omar Khayyam, nove séculos atrás. E mesmo assim, qualquer conteúdo matemático nos Rubayiat de Khayyam somente será percebido com muita imaginação de quem lê. Utilizando seus conhecimentos matemáticos, Khayyam conseguiu corrigir o calendário persa. E, procurando por qualquer referência a essa contribuição em seus poemas, o melhor que encontrei foi o seguinte trecho:


Aquele que criou o Universo e as estrelas
exagerou quando inventou a dor.
Lábios vermelhos como rubis, cabelos perfumados,
quantos sois no mundo?

As relações entre poesia e matemática são claramente perceptíveis, sejam por padrões históricos ou sociais. Mas a capacidade de lidar com isso ainda não surgiu em nossa espécie. O fenômeno humano é ainda pequeno demais para perceber o que ele mesmo cria e descobre. E esta pequenez parece ser um tema fascinante para poetas e até mesmo matemáticos. 

quarta-feira, 3 de junho de 2015

A busca pela felicidade pode ser uma ideia infeliz


Em um estudo publicado em 1997, foi relatado que, em média, 60% do tempo despendido em conversas informais entre pessoas era dedicado a um único assunto: elas mesmas. Temas de caráter geral como esportes, política e religião, cultura e artes, e estudo e trabalho, ocupavam, respectivamente, 9%, 3%, 4% e 13% do tempo de diálogos. Hoje, na tão aclamada era da informação, os assuntos discutidos em redes sociais como Facebook e Twitter mostram um quadro evolutivo curioso: 80% das mensagens trocadas por pessoas são sobre um único assunto: elas mesmas

Fascinante, não? Se alguém fala mais sobre si mesmo do que sobre qualquer outro assunto, isso obviamente o torna pouco interessante. Então por que pessoas ainda fazem isso? Neurocientistas têm uma explicação parcial para tão monótono fenômeno: as pessoas preferem falar sobre elas mesmas simplesmente porque isso faz bem para elas. 

Em artigo publicado em 2012 em Proceedings of the National Academy of Sciences, Diana Tamir e Jason Mitchell, do Departamento de Psicologia da Universidade Harvard, relatam a sondagem de cérebros de 195 indivíduos, utilizando ressonância magnética funcional. Quando compararam as análises entre momentos em que esses indivíduos estavam focados neles mesmos e momentos nos quais estavam concentrados em outros assuntos, o resultado foi bastante informativo: falar sobre nós mesmos ativa regiões do cérebro associadas com recompensas. São as mesmas regiões cerebrais ativadas durante o sexo, a ingestão de boa comida, ou o consumo de cocaína. Ou seja, além de prazeroso, falar sobre nós mesmos é viciante. 

Por que discuto sobre isso em um blog dedicado à educação? A razão é simples. Porque há algum tempo pesquisadores têm percebido que estamos vivendo uma era de narcisismo. E narcisismo é um fenômeno que afasta pessoas do mundo em que vivem, prejudicando, portanto, a educação. Até mesmo câmeras fotográficas embutidas em telefones celulares comumente fazem correção de simetria de selfies, como forma de estímulo à apreciação de nossos próprios rostos. É a velha ironia do ego: "egoísta, por definição, é quem não pensa em mim."

Recentemente perguntei em sala de aula quem fazia curso superior com o objetivo de conquistar inserção social. Somente uma aluna se manifestou de forma imediata. Mas, logo em seguida, todos os demais disseram que fazem curso superior apenas para conseguir um contra-cheque mais gordo no final do mês. Ficou claro, no contexto da "conversa", que nenhum deles percebeu que conquistar um contra-cheque mais gordo é uma forma de inserção social. Por que isso? Porque o mundo em que vivem é um mundo sem reflexão alguma sobre onde vivem. Tudo o que querem é dinheiro. E por que querem dinheiro? Porque assim poderão comprar coisas, poderão viver melhor. Mas essa visão reducionista de mundo, na qual praticamente toda a realidade se resume à busca pelo bem estar individual e imediato, traz algum tipo de conforto sobre o futuro? Não tenho dados concretos sobre meus alunos ou o Brasil, para responder a tal questão. Mas tenho dados concretos de uma realidade não muito distante da nossa.

Em uma reportagem publicada dois dias atrás, chama-se a atenção para o fato de que mais de 70% do povo norte-americano acredita que a próxima geração sofrerá mais do que a atual. Essa insegurança é reflexo das radicais e imprevisíveis mudanças provocadas por novas tecnologias. Pessoas têm sido mais céticas sobre o efetivo papel social de instituições de ensino. Cursos superiores não têm mais acompanhado as demandas do mercado de trabalho. Tanto é verdade que hoje já se percebe que qualificação profissional não se conquista em quatro ou cinco anos de estudos em uma graduação. Hoje sabe-se que qualificação profissional é um processo ininterrupto, que acompanha toda a vida produtiva de um indivíduo. Um exemplo marcante dessa tendência do século 21 é o Starbucks College Achievement Plan, uma parceria entre a rede de lanchonetes Starbucks e a Universidade Estadual do Arizona, para estimular os funcionários Starbucks a realizarem cursos superiores online. Starbucks sabe que seus funcionários não poderão servir café para sempre. Quando eu ia ao supermercado em Columbia, na Carolina do Sul, mais de dez anos atrás, eu mesmo fazia a leitura dos códigos de barras dos produtos que eu queria levar. Não havia funcionário humano para me atender. Havia apenas uma máquina. 

O que o mercado de trabalho espera das novas gerações? A resposta é uma só: soluções de problemas. O século 21 não exigirá curso superior como único caminho possível para o sucesso profissional. Mas certamente exigirá (e já exige) a solução de problemas, mesmo em um país socialmente amorfo como o Brasil. 

Recentemente troquei diversas mensagens com um leitor deste blog sobre um projeto de mestrado profissional dele. Seu objetivo é trabalhar com licitações públicas em uma instituição federal de ensino superior. Já fui chefe de departamento e bem sei como processos de licitação pública são extremamente engessados. Mas mesmo diante deste engessamento é possível sim desenvolver ideias. Como? Por meio do uso de uma exigência legal já existente na legislação brasileira: compras públicas da administração federal devem atender a critérios de sustentabilidade. Como essa prática não existe ainda no Brasil, aí está uma ótima oportunidade de inovação, mesmo em um ambiente burocrático imbecilizado, como ocorre em instituições federais. Ou seja, a própria burocracia definida por aspectos legais pode ser usada para remodelar a burocracia de compras públicas. Realizar isso é um exercício de criatividade e, portanto, uma oportunidade que interessa não apenas a instituições federais, mas também à iniciativa privada. 

Problemas ligados a sustentabilidade estão entre as prioridades do presente e do futuro. E, neste sentido, as novas gerações devem se concentrar menos em selfies e mais no mundo em que vivem, se quiserem atender às suas próprias necessidades pessoais de satisfação. Quer conquistar um contra-cheque mais gordo? Então comece a prestar atenção no que ocorre ao seu redor. Pare de falar tanto de si mesmo! 

Do ponto de vista filosófico, existem duas visões dominantes sobre felicidade:

1) Felicidade é um estado mental.

2) Felicidade é uma vida que transcorre bem, por ações de uma pessoa que a conduz.

No presente momento as novas gerações apenas usam as novas tecnologias, sem de fato as compreenderem. Essas novas tecnologias não estão aqui para alimentar o ego de seus usuários. Elas surgiram para resolver problemas. Portanto, não crie mais problemas. Crie soluções. Uma sociedade de abobados que adoram falar de si mesmos não é uma sociedade sustentável.

Se o curso que você realiza em alguma instituição de ensino não o habilita a resolver problemas em sua área, é melhor começar a investir por conta própria, para preencher esta grave lacuna de formação. Vejo alunos de matemática que não têm a mais remota ideia de como modelar matematicamente fenômenos do mundo real. Vejo alunos de direito que sonham com uma estagnada posição de juiz federal. Vejo alunos de estatística que não conhecem as graves limitações do valor-p como critério de confiabilidade de inferências estatísticas em ciências humanas. 

Se sua busca por felicidade é a busca por um estado mental, então falar a respeito de si mesmo no Facebook pode ser uma ótima ideia, pelo menos enquanto sua vida for sustentável pela generosidade de seus pais ou de eventuais programas sociais de governos. Mas se sua busca por felicidade tiver um alcance maior, pensando na condução de sua vida como um todo, é melhor começar a prestar atenção na vida dos outros. Existem muitos problemas que devem ser resolvidos ainda. 

As novas tecnologias estão aí não apenas para mudar a realidade do mercado de trabalho, mas também para mudar os modos de aprendizado de cada um de nós. 

E então? Sobre o que você vai falar hoje no Facebook ou no Twitter?