sábado, 30 de maio de 2015

A aula que o Brasil perdeu


A Segunda Guerra Mundial, encerrada 70 anos atrás, transformou profundamente a civilização ocidental, mas não o Brasil. Diante do mais importante evento do século 20, nosso país estava simplesmente deitado em berço esplêndido, tirando uma soneca. Foi esta guerra que separou os homens das crianças.

A Segunda Guerra Mundial foi a Guerra da Ciência e não do campo de batalha. A Alemanha nazista de Adolf Hitler foi extraordinariamente eficiente na elaboração de uma política de pesquisa e desenvolvimento que viabilizou uma sólida parceria entre cientistas, tecnólogos e engenheiros, bem como empresas privadas, para atender a interesses militares governamentais. E as forças aliadas, especialmente Inglaterra e Estados Unidos, entenderam isso muito bem. 

Cito uns poucos exemplos. 

1) A máquina eletrônica concebida por Alan Turing para quebrar os códigos nazistas gerados por outra máquina (Enigma) teve papel crucial em campanhas britânicas contra alemães no Atlântico. Foi uma obra de engenharia concebida por um dos mais brilhantes matemáticos da história e que salvou a vida de milhões de soldados e civis. 

2) A maior parte das mortes de soldados durante a Primeira Guerra Mundial foi causada por perda de sangue resultante de ferimentos. Em função disso e do novo conflito que iniciou em 1939, Edwin Cohn, bioquímico de Harvard, isolou albumina do plasma sanguíneo. Albumina é uma proteína que pode ser armazenada por longos períodos de tempo e facilmente transportada. Essa descoberta salvou a vida de milhões de soldados. 

3) Um dos problemas de logística em qualquer guerra é a distribuição de comida. Samuel Hinkle, químico da Hershey Company, desenvolveu uma barra de chocolate altamente calórica e nutritiva, mas com sabor intencionalmente ruim, para manter soldados americanos permanentemente alimentados em campo de batalha. George Stigler também colaborou neste sentido, resolvendo um problema de otimização hoje conhecido como dieta de Stigler. Foi um trabalho pioneiro de programação linear. 

4) Aparelhos eletrônicos capazes de produzir pulsos de ondas de rádio, em uma direção especificada pela posição de uma antena, são capazes de detectar certos objetos metálicos a grandes distâncias e com muita precisão. Esses aparelhos foram desenvolvidos como projetos secretos em diversos países, durante os anos 1930, incluindo Alemanha, União Soviética, Japão, França, Itália, Inglaterra, Holanda e Estados Unidos. Os norte-americanos batizaram o invento com o nome de RADAR. Era uma tecnologia que permitia inibir ataques-surpresa vindos de terra, ar e mar.

5) A bomba atômica é, sem dúvida, o exemplo mais impactante de parceria entre ciência, tecnologia e militarismo durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar da Alemanha nazista ter investido em seu próprio projeto da bomba, foi uma equipe norte-americana, chefiada pelo físico Robert Oppenheimer, que conseguiu concluir com sucesso essa empreitada. Resultado: genocídio instantâneo de cerca de oitenta mil cidadãos japoneses e coreanos, se levarmos em conta apenas a cidade de Hiroshima. Outros cinquenta mil morreram posteriormente por conta de contaminação radioativa. 

Os aviões a jato Messerschmitt Me 262 foram uma das últimas super-armas da Alemanha nazista, apesar do projeto já existir antes mesmo do começo da Segunda Guerra. Essas aeronaves revolucionaram não apenas a tecnologia militar, mas também a aviação civil. E os mísseis balísticos V2, outra tecnologia de ponta alemã, aterrorizaram e mataram milhares de britânicos e belgas. Estima-se que três mil foguetes V2 foram lançados contra inimigos da Alemanha nazista. 

Com o fim da Guerra, o engenheiro responsável pela tecnologia V2, Wernher von Braun, passou a comandar o programa espacial norte-americano, o que resultou na primeira missão tripulada para a Lua. Os soviéticos também copiaram tecnologia desenvolvida por von Braun e sua equipe. Ou seja, foi a tecnologia alemã que iniciou a corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética, durante a Guerra Fria. 

A participação do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial foi periférica e fortemente influenciada pelos Estados Unidos. Por um lado, os norte-americanos estavam interessados no apoio brasileiro para fornecimento de aço e borracha para os aliados. Por outro, o Brasil demorou muito para enviar tropas para o campo de batalha. Mas, de qualquer forma, a colaboração brasileira não se deu em termos científicos ou tecnológicos. Daí o uso do termo "periférica". 

Cito o triste caso dos soldados da borracha. Milhares de nordestinos migraram para a floresta amazônica, movidos por promessas de riqueza em função de uma parceria entre Brasil e Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto Alan Turing era um soldado que lutava em um laboratório para decifrar os códigos da máquina alemã Enigma, os soldados da borracha trabalhavam em regime semelhante à escravidão e enfrentando doenças tropicais. Ao término da Guerra, eles foram simplesmente esquecidos por nossas autoridades. O governo dos Estados Unidos chegou a enviar dinheiro, como forma de compensação. No entanto, esses recursos foram desviados aqui mesmo, provavelmente para a construção de Brasília, outra empreitada que custou a vida de muitos. Uma análise histórica multifacetada dos soldados da borracha pode ser encontrada no livro In Search of the Amazon, de Seth Garfield. 

Em função dos abusos monstruosos da Guerra da Ciência, foi feita a Declaração dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Isso mudou alguma coisa? Bem. Ainda não ocorreu a Terceira Guerra Mundial. Mas neste link o leitor pode encontrar um levantamento dos cem conflitos militares mais sangrentos desde o fim da Segunda Guerra. Ao todo o mundo já testemunhou 250 conflitos militares nos últimos 70 anos, resultando em 30 milhões de mortes (quantia apenas estimada). E o país que mais marcou presença nestes conflitos foi justamente os Estados Unidos, a nação que hoje lidera a produção de conhecimento científico e tecnológico. 

Brasil é um país que não tem tradição científica, tecnológica ou bélica. E o fato é que ciência e tecnologia, ainda que não tenham finalidades militares, são instrumentos de poder. É um poder que nosso país tem sistematicamente ignorado. E é um poder que, honestamente, faz falta para nós. 

Quando a tcheca Johanna Döbereiner identificou uma bactéria que fixa o nitrogênio ao solo, ela mudou a economia de nosso país. Hoje o Brasil é o maior produtor mundial de soja, graças ao resultado de um único projeto científico. Döbereiner foi também a principal responsável pelo programa Proalcool, referência mundial de tecnologia em combustíveis. No entanto, quem lembra desta que é a cientista mulher mais citada em nosso país? 

Brasil é um país que conta com mentes brilhantes que certamente podem fazer a diferença. Mas a cultura de nosso povo, espelhada em nossos governantes, simplesmente não enxerga isso. 

Quando perguntaram a Hitler como ele ocuparia o Brasil, reza a lenda que ele teria respondido laconicamente: "Eu tomo com um telefonema". Hoje não existe mais a ameaça nazista. Brasil não tem inimigos. Mas também não tem feito muitos amigos. É ainda uma nação-criança, cujos jovens percebem educação apenas como forma de obter contra-cheques menos magros, cujas escolas mantêm professores mal qualificados, e cuja sociedade ignora completamente o poder transformador do conhecimento.

Como sair disso? Continuarmos deitados em nosso berço esplêndido certamente não ajuda. Então, que tal começarmos a estudar ciências? Seria um ótimo ponto de partida. 

O Brasil pode não ter percebido ainda, mas o mundo lá fora está em guerra. Há guerras no sentido convencional, mas há também uma guerra econômica, uma guerra científica e uma guerra tecnológica. Já perdemos a aula da Segunda Guerra Mundial. Vamos perder agora o restante deste interminável e belicoso período letivo? O que é necessário para o brasileiro acordar? Um tapa na cara?

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Ode para os delicados


O delicado não magoa. Tem medo de ser magoado.

O educado denuncia. Tem medo das ramificações dos erros.

O delicado denuncia apenas os poderosos. Imagina que eles não se magoam.

O educado denuncia erros. Não interessa se magoa ou não.

O delicado reclama.

O educado constrói. 


O delicado se cala diante do discurso do respeito como um direito de todos. 

O educado questiona.

O delicado tolera erros na língua natal a ponto de não mais percebê-los.

O educado conhece as ambiguidades das linguagens naturais, ainda que sigam normas cultas. E corrupção da língua certamente não ajuda.

O delicado tolera e até incentiva políticas afirmativas em defesa dos oprimidos.

O educado reconhece que nenhuma política pode ser imposta sem uma sólida validação científica.

O delicado julga que minorias são delicadas.

O educado percebe que a posição das minorias é delicada.


O delicado acha que é educado pedir licença.

O educado sabe que é delicado pedir licença.

O delicado exige que seus direitos sejam reconhecidos.

O educado é fiel aos seus deveres.


O delicado percebe apenas duas cores: preto e branco.

O educado sabe que não percebe todas as cores.

O delicado luta por sua inserção social.

O educado luta pela transformação social.

O delicado se ofende, grita, bate panelas, comenta kkkkkkk, domina apenas rudimentos de linguagem.

O educado aprende e discute sobre o que aprendeu.


O delicado é oprimido por si mesmo, e o educado sabe disso.

O delicado defende cadeia para todo político corrupto. 

O educado sabe que Abraham Lincoln fez uso de corrupção para abolir a escravidão de seu país.

O delicado se vitimiza, alegando "Você sabe o que eu quis dizer."

O educado assume responsabilidade sobre o que diz e somente presta atenção no que ouve.


O delicado julga que críticas são feitas pensando nele.

O educado percebe um mundo um pouco maior.

O delicado é guiado por desejos. O educado também. A diferença é que o educado sabe disso.

O delicado é frágil e se ilude com a força do coletivo.

O educado é frágil e se espanta com a força do coletivo.

O delicado é político.

O educado é educado.


Um delicado fica longe da educação. Um educado tenta se afastar da delicadeza. 

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Concurso de Fotografia - Erros de Português


Este é o novo Concurso Público promovido pelo blog Matemática e Sociedade: Fotografe um Erro de Português em uma Instituição de Ensino Brasileira. Não precisa ser fotógrafo profissional. Se quiser, pode usar até mesmo telefone celular para fotografar. O que interessa é o tema.

O objetivo é capturar, na forma de imagem, erros de português. Basta fotografar placas, cartazes, editais, camisetas, adesivos, provas, cadernos, documentos ou quaisquer objetos que tenham relação direta com qualquer instituição de ensino brasileira, e enviar sua foto em formato jpg para o perfil Facebook de Adonai Sant'Anna, acompanhado de seu nome completo e de dados sobre a origem da foto. Cada participante pode enviar, no máximo, três arquivos jpg. Os participantes deste concurso devem também declarar que são os autores das imagens enviadas e que não editaram as fotos.

O prazo para envio das imagens é 27 de junho de 2015. Os arquivos recebidos até esta data serão publicados neste blog no dia 30 de junho de 2015. Os próprios leitores escolherão a melhor imagem até o dia 07 de julho seguinte. Para isso, basta votar na forma de comentário. O autor da foto com mais votos dos leitores receberá o seguinte prêmio: o livro Brasil Rupestre - Arte Pré-Histórica Brasileira, de Marcos Jorge, André Prous e Loredana Ribeiro. Marcos Jorge é cineasta, diretor do brilhante filme Estômago e do documentário sobre arte rupestre O Ateliê de Luzia. André Prous é Doutor em Pré-História pela EPHE/Sorbonne e criador do Setor de Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Loredana Ribeiro é Doutora em Arqueologia pela Universidade de São Paulo e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas. O livro em questão é um importante documento que promove um mapeamento e registro fotográfico de sítios arqueológicos em quinze estados de nosso país. Os textos que acompanham os registros fotográficos são escritos em português e inglês. E o projeto contou com o apoio da Petrobras.

O fotógrafo premiado receberá o livro Brasil Rupestre por meio de SEDEX ou FedEx, dependendo do endereço. As despesas de envio serão assumidas pelo Administrador do blog Matemática e Sociedade.

A motivação para este concurso é simples: não é possível promover ciência e educação sem respeito à linguagem. Pelo menos a língua portuguesa precisa ser respeitada.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Como escrever artigos científicos


Recentemente descobri algo que me deixou perplexo. A internet está repleta de cursos sobre escrita científica. Descobri, por exemplo, que a Universidade Stanford é uma das instituições de renome que oferece curso sobre como escrever artigos científicos. No Brasil, a Universidade de São Paulo também oferece algo parecido. Fiquei sonolento quando acompanhei um dos vídeos. Isso tudo me faz lembrar do péssimo livro de Umberto Eco, intitulado "Como Se Faz Uma Tese". Este texto de Eco pode ser uma ótima referência para aqueles que não têm a menor aptidão para a atividade científica, mas que desejam se tornar sócios do Clube da Ciência, publicando textos desinteressantes que apenas acumulam pó em prateleiras de bibliotecas. É o tipo de público que fica fascinado com as normas da ABNT. Mas o autor nada discute sobre aquilo que realmente interessa: o ato da criação. E nem poderia! 

Preocupar-se sobre como escrever um artigo científico é equivalente à preocupação sobre o que vestir no dia do próprio casamento. É claro que a roupa usada no casamento trata-se de uma demonstração de respeito e seriedade perante a cerimônia. Mas o que realmente importa, no final das contas, ainda é o casamento. Évariste Galois que o diga! Seus artigos eram definidos por afirmações ambíguas, com problemas de pontuação e um estilo irregular. Em um trabalho publicado em 1830 no Annales de Mathématiques, até mesmo o nome de Galois estava escrito errado. No entanto, a obra deste grande cientista francês se consagrou como um monumento incontestável na história da matemática. 

Os inúmeros cursos que existem por aí sobre escrita científica são um mero sintoma de um fenômeno muito grave que assola o planeta: a crise na ciência. 

Temos, hoje em dia, teses repletas de plágios, artigos com erros graves, ideias absurdas defendidas por pesquisadores que escrevem muito bem, periódicos de acesso livre que publicam qualquer coisa que autores escrevam (desde que paguem), insanos movimentos de dissidência científica, filósofos que não filosofam, e pelo menos um Membro da Academia Brasileira de Ciências que defende o Criacionismo

Pois bem. Aqui vai o meu "curso" sobre escrita científica. 

A pessoa interessada em publicar artigos científicos precisa de apenas duas aptidões:

1) Saber desenvolver uma ideia científica relevante e inédita.

2) Saber escrever de forma persuasiva.

Como desenvolver ideias científicas relevantes e inéditas? Bem. Se milhares de exemplos históricos, ao longo de séculos de atividade científica sistemática, ainda não deixaram claro o suficiente o processo de criação, eis as três informações-chave: estudo, troca de ideias e busca por soluções. 

Sem conhecer ciência profundamente, não é possível desenvolver ciência inédita e relevante. E, para conhecer ciência, é necessário muito estudo. Livros clássicos e artigos recentes veiculados nos melhores periódicos são um excelente ponto de partida. 

Mas não adianta apenas estudar. É necessário trocar ideias com experientes pesquisadores e cientistas, periodicamente. A experiência dos mais velhos precisa ser confrontada com a ousadia e a criatividade dos mais jovens. "Pensar fora da caixinha" é fundamental. Mas saber ouvir é igualmente importante. 

A busca por soluções é a parte mais difícil. Um problema genuinamente importante e difícil só pode ser resolvido diante de um compromisso ininterrupto com o mesmo. Problemas científicos sérios não são necessariamente resolvidos em horas estipuladas para reflexão. Não basta agendar: "durante este horário do dia eu penso". Cito o famoso exemplo de William Rowan Hamilton. Este célebre cientista irlandês sabia que os números complexos podiam ser compreendidos como pontos em um plano e que as operações algébricas sobre eles eram associadas a operações geométricas. Pensou, então, em estender esses resultados para pontos em um espaço tridimensional. Mas sempre fracassava quando tentava definir multiplicação entre triplas ordenadas. Foi durante um passeio com a esposa, sobre uma ponte de Dublin, que Hamilton vislumbrou a solução para o seu problema: basta considerar quádruplas ordenadas ao invés de triplas. E assim nasceram os quatérnions. Um agradável passeio com a esposa não é o bastante para alienar a mente de um cientista. Ciência é uma atividade extraordinária. Problemas científicos acompanham a mente do pesquisador nos momentos mais inesperados, pelo menos aos olhos daqueles que não são cientistas. 

Agora vamos à aptidão número 2: escrita persuasiva. 

Textos científicos, assim como a maioria dos textos não-ficcionais, devem ser persuasivos. Textos científicos devem convencer seus leitores. Esta é a arte da eloquência, a arte de bem argumentar, a arte da palavra, também conhecida como retórica. E a história da retórica, como bem coloca o físico Anthony Garrett, não é a história da ciência. 

Quem não sabe escrever artigos científicos, também não sabe ser persuasivo. É possível sim aprender as técnicas da retórica. Mas há pessoas muito persuasivas que jamais estudaram retórica. E isso é algo interessante, uma vez que não é possível fazer ciência sem conhecer ciência. 

Nos ensinos fundamental e médio estuda-se português, inglês e filosofia. E há um motivo para isso: para aprendermos a ler, escrever e argumentar. 

Não sabe escrever um artigo científico? Então escreva uma ideia qualquer e procure defender esta ideia da melhor maneira possível! Em seguida mostre o seu texto para outras pessoas e acompanhe as críticas. A internet é uma oportuna ferramenta de exposição de ideias e que jamais esteve à disposição da maioria das grandes mentes da ciência. Algumas críticas serão absurdas. Outras serão inócuas. Mas eventualmente alguém apresentará uma crítica que aponte para os seus erros. Errar dói. Mas é aquela história: errando se aprende.

Quando eu era aluno de ensino médio, submeti um artigo para um periódico científico. O resultado foi um desastre. O artigo foi recusado. Anos depois percebi: "onde eu estava com a cabeça, para escrever uma coisa daquelas?" 

Durante o mestrado escrevi um artigo em parceria com meu orientador, Germano Bruno Afonso. O texto foi aceito e publicado. Era algo pequeno, mas eu estava no caminho. Jamais teria conseguido realizar aquele trabalho, naquela época, sem o senso crítico e a experiência de meu orientador. E é justamente esta a função do orientador: orientar.

Durante meu pós-doutorado em Stanford, aventurei-me com o primeiro artigo solo escrito seriamente. Era um trabalho sobre mecânica de Hertz. Escrevi com extremo cuidado, mostrei versões preliminares para colegas, recebi críticas, apliquei minhas próprias críticas, procurei ser convincente, evitei redundâncias e ambiguidades, procurei demonstrar familiaridade com o tema. Tudo o que eu queria era descrever as ideias de Hertz sobre mecânica em uma linguagem formal axiomática. Isso contrastaria com a usual noção de que forças são indispensáveis em mecânica newtoniana. Consultei pesquisadores experientes a respeito de opções de periódicos adequados para submissão. Apresentei o trabalho em um evento na Itália, para uma plateia de físicos e filósofos de diferentes cantos do mundo. E somente então submeti o artigo. Foi aceito, sem necessidade de fazer modificações. Hoje este trabalho é citado por Max Jammer, em seu clássico livro sobre conceitos de massa em física

Patrick Suppes dizia: "Jamais termino de escrever livro algum, artigo algum. Apenas os abandono." Resultado: centenas de publicações científicas e filosóficas que transformaram o século 20.

Conheço minhas limitações. Então, o que faço? Parcerias com profissionais de altíssimo nível e extremamente exigentes. Raramente publico artigos solo. Por quê? Porque assim recebo críticas. Críticas impulsionam resultados melhores, quando sabemos ouvir. Meus trabalhos mais citados são, em sua maioria, artigos feitos em parceria. 

Como se aprende a namorar? Namorando! Como se aprende a escrever? Escrevendo! Como se aprende a pensar? Pensando! 

Se quiserem discursar sobre como discursar, fiquem à vontade. Mas acho que existem coisas mais importantes para se fazer. Casei com a ciência, sem terno e sem sapato italiano. Mas vivo uma relação estável e relativamente afetuosa.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Reforma agrária: do campo para a universidade


Esta postagem trata de cursos de Direito em duas universidades federais, com turmas formadas exclusivamente por beneficiários da reforma agrária. Para facilitar a leitura, dividi o texto em cinco partes.


I - Histórico

Em 17 de agosto de 2007 foi estabelecido um convênio surpreendente entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a Universidade Federal de Goiás (UFG). Este convênio definiu a utilização de recursos do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), para custeio de uma turma especial do Curso de Direito da UFG, destinada exclusivamente a assentados, acampados e quilombolas. 

Logo depois o Ministério Público Federal (MPF) abriu uma ação civil pública contrária à criação e manutenção desta turma especial de Direito na UFG. 

Em 15 de junho de 2009 o juiz Roberto Carlos de Oliveira, da 9.a Vara Federal, emitiu uma sentença que: (i) declarou a ilegalidade do convênio em questão; (ii) determinou a extinção do correspondente curso de graduação em Direito, criado pela resolução 18/06 do Conselho Universitário da UFG; mas (iii) garantiu a validade das atividades acadêmicas já realizadas, assegurando a conclusão do semestre letivo então em curso. Tenho esta sentença judicial em formato pdf, se alguém estiver interessado. 

O INCRA apelou em instância superior. E a turma especial de Direito da UFG continuou com suas atividades acadêmicas normais, contrariando a decisão judicial. Uma curiosa demonstração do "poder" da justiça brasileira.

Em 24 de agosto de 2012 o INCRA publica em seu site uma decisão da Sexta Turma do Tribunal Regional Federal (TRF), a qual anula a sentença do juiz Roberto Carlos de Oliveira. A partir daquela data o curso em questão passa a ser legalizado. Isso ocorreu duas semanas após os alunos da turma especial receberem seus diplomas.

O INCRA interpretou esta decisão do TRF como um reconhecimento de que o MPF nem poderia ter ajuizado a ação. Além disso, a determinação do INCRA foi estimulada: o projeto deve continuar, e não apenas em Goiás.

Desde 2009 estudantes, professores e técnicos administrativos da Universidade Federal do Paraná (UFPR) lutam pela criação de uma turma de Direito exclusivamente para assentados, acampados e quilombolas

No período de 03 de novembro a 07 de dezembro de 2014 foram finalmente abertas inscrições para o processo seletivo específico com o objetivo de preencher as 60 vagas disponibilizadas para a turma de graduação em Direito destinada somente a beneficiários do PRONERA. O processo seletivo já foi realizado e as aulas desta turma especial estão hoje em andamento. As disciplinas lecionadas são as mesmas do Curso (regular) de Direito da UFPR, bem como os docentes. 


II - Críticas

Os argumentos contrários à criação de uma turma de graduação em Direito exclusivamente para assentados, acampados e quilombolas, segundo o MPF, foram os seguintes:

1) Ofensa ao princípio constitucional da igualdade. Beneficiários do PRONERA estariam sendo submetidos a oportunidades que outros segmentos sociais não têm.

2) Falta de sintonia com qualificação rural. Beneficiários do PRONERA deveriam receber estímulos educacionais atrelados à finalidade da reforma agrária. E este não é o caso do estudo de Direito.

3) Falta de sintonia com o Ministério da Educação (MEC), o qual já havia se manifestado de forma negativa, em face da realização de vestibular restrito a determinada classe.

O INCRA e a UFG, por meio de petições, responderam com os seguintes argumentos:

1) O convênio INCRA/UFG/PRONERA não ofende qualquer princípio de igualdade. Trata-se de uma política pública justificada em razão de uma desigualdade social já existente. 

2) Existe sintonia entre a reforma agrária e a formação de beneficiários do PRONERA na área de Direito. Isso porque o Direito Agrário é fundamental e essencial para amenizar conflitos no campo e construir uma reforma agrária ordeira, pacífica e dentro da lei.

3) As universidades federais gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. A intervenção do judiciário implicaria em interferência na competência conferida à autoridade administrativa.


III - Argumentos do INCRA e da UFG

Na opinião do Administrador deste blog, há evidente fragilidade nos argumentos do INCRA e da UFG, para sustentar o convênio em questão:

1) Sobre o princípio de igualdade. Já existem programas de cotas sociais em universidades federais. O que difere os jovens beneficiados pelos programas da reforma agrária daqueles jovens que não são, mas que também estudam em escolas públicas? Estariam o INCRA e a UFG falando de alguma minoria dentro de uma minoria?

2) Sobre a necessidade de Direito Agrário. A formação educacional de beneficiários da reforma agrária em áreas diretamente ligadas ao trabalho no campo certamente têm o potencial para o desenvolvimento econômico dos novos agricultores. Isso viabilizaria a contratação de advogados especializados em assuntos agrários. Além disso, beneficiários da reforma agrária precisam também de cuidados médicos, segurança, máquinas, casas e demais abrigos, telecomunicações, saneamento, distribuição de energia, entre outros benefícios. Por que o foco em Direito? O que está em jogo: desenvolvimento ou luta?

3) As universidades federais não gozam de autonomia alguma. Universidades federais não podem promover concursos públicos para fins de contratação de professores e técnicos administrativos sem autorização do governo federal, não podem demitir professores e técnicos administrativos incompetentes, não podem impor políticas científicas inéditas sem sofrerem consequências de órgãos de fomento à pesquisa e não podem reprovar muitos alunos sem se indisporem com o MEC e, consequentemente, sem sofrerem consequências.


IV - Sobre os beneficiados

Fiz contato, via Facebook, com dez jovens cujos nomes aparecem na lista de aprovados no processo seletivo exclusivo para o Curso de Direito/PRONERA da UFPR. Fiz duas perguntas para cada um: (i) Você confirma ser aluno(a) matriculado(a) no Curso de Direito do convênio UFPR/PRONERA? (ii) Qual foi a sua motivação para fazer esse curso? 

Entre os dez consultados, apenas três responderam (até o momento da veiculação desta postagem). Um deles disse que, apesar de ter sido aprovado no processo seletivo, teve sua matrícula indeferida, por conta de aspectos burocráticos. Os outros dois queriam saber por que eu estava interessado no assunto. Expliquei detalhadamente, indicando este link do blog Matemática e Sociedade, no qual há uma excelente discussão promovida por Ítalo Oliveira, sobre os cursos de Direito em nosso país. Um deles disse que estava ocupado demais para me ajudar e me bloqueou no Facebook. O outro simplesmente não deu retorno. Isso aconteceu apesar de eu ter explicado que minha intenção era escrever uma postagem sobre o tema e que seria informativo conhecer a opinião dos alunos.


V - Considerações finais 

Estas reações dos alunos matriculados (as informações nas respectivas páginas pessoais confirmam seus vínculos com o Curso de Direito da UFPR), somadas ao princípio de isolamento acadêmico dessa turma de assentados, acampados e quilombolas, apenas reforça o espírito poliversitário da UFPR e de todas as demais instituições de ensino superior de nosso país. 

A palavra "Universidade" remete a um princípio de universalização do conhecimento. No entanto, essa universalização simplesmente não existe em nosso país. Pelo contrário, o que impera é o simples isolamento. Como já insisti em outras ocasiões, jovens brasileiros não se matriculam em universidades, mas em cursos de graduação. E agora, para piorar a situação, estamos promovendo uma distinção entre estudantes de direito e estudantes de direito beneficiados pelo PRONERA. 

Conversei com um professor da Faculdade de Direito da UFPR e perguntei para ele se esta iniciativa não abriria um precedente para que outras minorias (homossexuais, índios e deficientes físicos) pudessem pleitear tratamentos especiais em universidades federais. A resposta dele foi sucinta: "se o sistema jurídico tiver que ser coerente, deveria abrir".

Considere, por exemplo, o caso de deficientes físicos e mentais. Existem deficiências físicas e mentais conhecidas como invisíveis. São deficiências não imediatamente aparentes para observadores externos. Algumas delas apresentam sintomas como dores intensas e permanentes, fadiga constante, tontura, disfunções cognitivas, entre outros exemplos. Uma pessoa com deficiência invisível pode perder oportunidades de estudos e emprego por conta da ignorância daqueles que nada percebem de errado com ela. Um indivíduo pode aparentar saúde física e mental perfeita, e ainda ser um deficiente. E, por conta disso, passa a compor uma minoria. Esta pessoa não deveria também ter o privilégio de estudar direito em uma turma formada exclusivamente por deficientes? Usando a lógica do INCRA, ela não deveria se proteger legalmente contra a opressão dos segmentos sociais privilegiados?

E os homossexuais? A UFG e a UFPR não deveriam abrir turmas de Direito exclusivamente para gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais? Podemos colocar em uma mesma turma um homossexual e um bissexual? Não deveríamos pensar também em quilombolas homossexuais que sofrem permanentemente com dores intensas nas costas? É uma minoria dentro de três outras minorias. Será que minorias não oprimem minorias?

Mas a parte realmente complicada disso tudo é que sei que vou ouvir muita loucura daqueles que acham que tenho alguma coisa contra quilombolas, homossexuais ou deficientes físicos e mentais. Mas, paciência. É apenas uma minoria que realmente pensa. E essa minoria jamais desperta simpatia alguma. 

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Quando matemática é o horror


William Shakespeare disse: "O mundo inteiro é um palco." 
Oscar Wilde respondeu: "O mundo pode ser um palco. Mas o elenco é um horror."

Como estabelecer uma fronteira entre o erro e aquilo que simplesmente não gostamos? Eu, por exemplo, não gosto de chocolate com mais de 75% de cacau. É um erro existir chocolate com 80% de cacau? Certamente que não. Afinal, há quem goste. 

Eu também não gosto de aulas de matemática definidas por processos de mera doutrinação, sem a exploração de senso crítico, como já deixei claro em várias postagens deste blog. É um erro existirem aulas desse tipo? Bem, assim como há pessoas que não gostam de chocolate realmente amargo, há também aqueles que preferem não pensar muito (pelo menos sobre matemática) e, portanto, têm preferência por aulas de matemática nas quais não seja necessário o emprego de senso crítico. Portanto, se eu insistir que aulas doutrinárias e superficiais de matemática são um erro, especialmente no ensino básico, isso pode soar como mera opinião de uma alma inflexível. E talvez seja mesmo! 

É claro que eu defendo aulas de matemática de alto nível! Eu adoro matemática! Mas e as outras pessoas? 

Treze anos atrás, uma estudante italiana da quarta série, do Liceu Científico Leonardo da Vinci, entrou com uma ação na Justiça por ter sido reprovada em matemática. Ela alegou que simplesmente odeia matemática. A palavra era essa mesma: ódio. Esta disciplina, segunda ela, provoca profundo bloqueio psicológico. Um parecer feito por um renomado psicólogo confirmou: "Viviana L. nutre um medo obsessivo, uma verdadeira patologia psicológica, em relação à matemática." O Tribunal Regional de Trento decidiu, então, que Viviana deveria ser aprovada para a quinta série, apesar dessa decisão violar as regras da escola. 

Quem tem o direito de exigir que alguém estude matemática? Professores? Convenhamos que as opiniões de matemáticos sobre essa disciplina são obviamente tendenciosas. Pais? Raramente estão qualificados para opinar sobre educação. Governos? São impessoais e burocráticos. A sociedade? Bem, a sociedade é o horror de Oscar Wilde.

Vamos admitir, pelo menos por um instante, que não existe uma fronteira clara entre certo e errado e simples gosto pessoal. Recentemente publiquei uma postagem neste blog sobre as belicosas discussões entre pessoas de diferentes tendências políticas em nosso país

Poderíamos encarar tais discussões sob a perspectiva de simples gostos pessoais, na qual indivíduos brigam violentamente sobre "a proporção ideal de cacau em uma barra de chocolate". Soa ridículo sim. Mas soa ridículo pelo simples fato de que o chocolate em si é a questão menor. Em meio a discussões sobre gostos pessoais, comumente domina o desejo de indivíduos imporem suas preferências sobre outros. E esta conclusão não é precipitada, como argumento adiante.

Aspectos comportamentais sobre ansiedade matemática são conhecidos na literatura especializada há mais de meio século. Sabe-se, por exemplo, que ansiedade matemática provoca impacto negativo de longo prazo, atingindo até mesmo o desempenho profissional de pessoas. 

No entanto, foi somente em 2011 que alguém finalmente questionou: existe alguma fundamentação biológica para a ansiedade matemática? A resposta parece ser positiva. 

Em artigo publicado em Psychological Science, pesquisadores da Universidade Stanford finalmente revelaram que ansiedade matemática é um fenômeno neurológico semelhante a outras formas de ansiedade. A revelação foi feita a partir da análise de ressonâncias magnéticas feitas em crianças com idades entre sete e nove anos e que demonstravam sintomas de ansiedade matemática. As ressonâncias, realizadas enquanto essas crianças faziam contas de adição e subtração, revelaram elevada atividade da amígdala, estrutura do lobo temporal responsável pelo instinto de auto-preservação. Ou seja, as crianças estavam simplesmente com medo daquelas contas de adição e subtração. Elas estavam se sentindo ameaçadas.

No entanto, neurologistas não conseguem ainda determinar a origem da ansiedade matemática. Esta situação remete ao célebre, fundamental e persistente problema da causalidade em medicina: a hiperatividade da região associada a medo, angústia e fobias é causa ou efeito da sensação de horror? 

Por que neurocientistas demoraram tanto para demonstrar interesse sistemático no problema da ansiedade matemática? Existe algum preconceito social que justifique este atraso? 

Certa vez ouvi um psiquiatra afirmar que uma pessoa é mentalmente saudável quando ela não permite que suas emoções interfiram em seu cotidiano. Se for este o caso, então vivo em um verdadeiro hospício chamado de planeta Terra. 

Os pais da menina italiana que odeia matemática tentaram ajudar a filha, contratando um professor particular... de matemática. Ou seja, ao invés de buscarem um tratamento para a ansiedade da menina, simplesmente pioraram a situação, trazendo a matemática para dentro de casa. É como se uma vítima de aracnofobia fosse jogada em uma cova repleta de aranhas. 

Todo o nosso sistema educacional é fortemente sustentado por imposições aplicáveis a todos. Todos devemos estudar matemática nos ensinos fundamental e médio, independentemente de nossos perfis pessoais. Eu, por exemplo, tive sorte. Gosto de matemática. E tive a sorte de não ter sido obrigado a comer chocolate amargo durante os onze anos de ensino básico que tive. Afinal vivemos em uma sociedade que prioriza matemática sobre o chocolate. 

Os casos extremos de ódio ou fobia contra a matemática apenas ilustram de maneira dramática o fato de que esta ciência não conta com qualquer apelo sedutor universal. Mas e os casos que não são extremos? Devemos simplesmente ignorá-los e insistir na doutrinação de que todos devem ser submetidos a este ramo do conhecimento? 

Não tenho a pretensão de apresentar qualquer conclusão sobre como devemos abordar a matemática no ensino básico, especialmente nos casos de alunos que obviamente não têm interesse algum sobre o tema. Reconheço que pouco sabemos sobre a mente humana. E também reconheço que pouco sabemos sobre o papel da educação na sociedade. Mas isso não significa que devemos continuar a aceitar cegamente nossos processos educacionais e nossa cultura, que insistem em discursar e insinuar que o desgosto pela matemática torna pessoas menos inteligentes e mais facilmente marginalizadas. Matemática, assim como chocolate amargo, não é para todos.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

O que é um número?


Algo que matemáticos aprenderam, melhor do que ninguém, é o convívio com a pluralidade de ideias. Não existe, em matemática, uma definição universalmente aceita para esclarecer o que é, afinal, um número. No entanto, matemáticos frequentemente trabalham com números, sem se preocuparem com a falta de convergência de ideias fundamentais. Então, qual é o sentido de escrever uma postagem sobre este tema? 

O que pretendo fazer aqui é apenas esclarecer alguns pontos importantes sobre números, ao mesmo tempo em que procuro desfazer alguns mitos muito comuns, não apenas entre leigos, mas até mesmo entre estudantes e professores de matemática. A visão intuitiva e bastante comum, de que números servem para contar e medir, simplesmente espelha uma percepção limitada e até corrompida do que se entende por números em matemática.

Antes de mais nada, preciso qualificar a linguagem que emprego aqui. Tudo o que é dito nesta postagem sobre números pode ser traduzido para uma linguagem formal de conjuntos. Para minimizar ambiguidades, apelo para a mais usual das teorias formais de conjuntos: Zermelo-Fraenkel com o Axioma da Escolha (ZFC) e algumas de suas variantes. No entanto, é perfeitamente possível adaptar as afirmações aqui feitas para outras teorias formais de conjuntos. 

ZFC é uma teoria formal com apenas dois conceitos primitivos: pertinência e igualdade. Em outras palavras, não existe em ZFC qualquer referência explícita a conjuntos. No entanto, compreender as "relações" entre pertinência e igualdade é um passo fundamental para entender conjuntos e, consequentemente, números. 

Comecemos com os números naturais. Frequentemente se diz que números naturais são números inteiros estritamente positivos (1, 2, 3, 4, 5, ...) ou números inteiros não negativos (0, 1, 2, 3, 4, ...). Até mesmo o excelente site Wolfram apela para essa "explicação". Mas o problema aqui é óbvio: o conceito de número natural depende do conceito de número inteiro. Ou seja, o problema de qualificar números naturais está sendo delegado para números inteiros. Esta é uma solução deselegante e desnecessária. 

Os números naturais são apenas conjuntos que pertencem a um conjunto comumente denotado por N. Como se define este conjunto N? A maneira mais usual é através dos axiomas de Peano, em sua versão de primeira ordem. De acordo com esses axiomas, existe uma constante, chamada de zero, pertencente a N. Além disso, há uma operação - chamada de Sucessor - de tal modo que, se n pertence a N, então o sucessor de n também pertence a N. Esta operação pode ser definida usando o conceito de união entre conjuntos (o qual é garantido pelos axiomas de ZFC, que - não custa lembrar - simplesmente estabelecem as "relações" entre pertinência e igualdade). Os demais axiomas de Peano dizem que: (i) zero não é sucessor de elemento algum de N; (ii) se m e n pertencem a N, de modo que os sucessores de m e n são iguais, então m e n são iguais; e (iii) se S é um conjunto que contém zero e também o sucessor de qualquer número natural, então S contém todos os números naturais. 

Entre os números naturais é usual definir duas operações bem conhecidas: adição (+) e multiplicação (.). Essas duas operações são comutativas [m+n = n+m e m.n = n.m], associativas [m+(n+p) = (m+n)+p e m.(n.p) = (m.n).p] e admitem elemento neutro [m+0 = m e m.1 = m]. Além disso, vale a distributividade da multiplicação em relação à adição [m.(n+p) = m.n + m.p]. Tais operações podem ser recursivamente definidas a partir da operação de Sucessor. Em outras palavras, nada além de teoria de conjuntos está sendo usado aqui. 

Sim, números naturais podem ser usados para contar, como fazemos para determinar o número de frutas em uma cesta. Neste sentido, a teoria dos números naturais pode ser também compreendida como uma teoria física. Mas não é apenas isso. O estudo de números naturais é legitimamente matemático, sem precisar de uma correspondência com o mundo real. Tanto é verdade que a espécie humana conta o número de frutas em uma cesta desde muito antes dos axiomas de Peano serem enunciados. Se os axiomas de Peano se tornaram tema de estudos entre matemáticos, é porque estes perceberam aspectos sobre números naturais que transcendem as aplicações cotidianas de métodos de contagem. 

Já os números inteiros também podem ser definidos a partir de uma linguagem como aquela empregada em ZFC. Existem aqueles (e não são poucos) que insistem que números inteiros podem ser positivos ou negativos. Mas como expressar os conceitos de sinal positivo e sinal negativo na teoria de conjuntos? Os símbolos + e -, usualmente empregados para diferenciar um caso do outro, são meras notações. Nada esclarecem, do ponto de vista conceitual. Assim como uma farda não qualifica uma pessoa como policial, um sinal + ou - não qualifica um número inteiro como positivo ou negativo.

A principal diferença entre números naturais e números inteiros radica nas propriedades algébricas da operação de adição. A adição entre números inteiros admite a existência de simétricos, algo que não ocorre entre números naturais. Como se expressa isso? A resposta é simples. Análogos aos axiomas da adição entre números naturais são fortalecidos com um axioma extra para os inteiros que diz: para todo número inteiro m existe um inteiro n tal que m+n é igual ao neutro aditivo (zero). As demais propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números naturais (comutatividade, associatividade, elemento neutro e distributividade) são apenas copiadas entre números inteiros. Uma maneira de apresentar modelos para números inteiros é através de classes de equivalência de pares ordenados de números naturais (desde que certos cuidados sejam tomados em ZFC). Uma visão meramente intuitiva e indolor sobre essa construção de números inteiros a partir de números naturais pode ser encontrada neste link

Neste contexto, é um erro a afirmação muito comum de que o conjunto dos números naturais está contido no conjunto dos números inteiros. O que de fato ocorre é que uma cópia canônica dos números naturais pode ser encontrada entre os números inteiros, uma vez que todas as propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números naturais estão copiadas entre os números inteiros. As famosas regras de sinais para a multiplicação entre inteiros são simples teoremas, neste contexto. É um mistério por que esse tipo de conhecimento não é abordado no ensino médio. Não há necessidade de apelar para ZFC, no caso de uma transposição de conhecimentos. Basta usarmos teoria intuitiva de conjuntos para que seja apresentada uma devida fundamentação para as conhecidas regras de sinais, as quais são costumeiramente vistas pelos alunos como meras arbitrariedades.

Com preocupante frequência costuma-se dizer também que números racionais são aqueles que podem ser representados na forma de frações p/q, sendo p e q inteiros e q diferente de zero. Ora, isso não faz sentido, por dois motivos: (i) Não existe divisão entre números inteiros (uma vez que não existem simétricos multiplicativos entre inteiros); e (ii) Não se estabelece um conceito a partir de uma notação. 

O que difere números racionais de números inteiros são as propriedades algébricas da multiplicação. A multiplicação entre racionais admite a existência de simétricos, exceto para o neutro aditivo (zero). Isso não ocorre entre números inteiros! Como se expressa essa ideia? A resposta é novamente simples. Análogos aos axiomas da multiplicação entre números inteiros são fortalecidos com um axioma extra para racionais que diz: para todo número racional r diferente de zero existe um racional s tal que r.s é igual ao neutro multiplicativo (um). A partir disso costuma-se falar de uma "operação" de divisão: r dividido por s é igual a r vezes o simétrico multiplicativo de s. No entanto, a divisão, neste sentido, não se trata de uma operação entre números racionais, uma vez que usualmente não se divide por zero. Operações, em uma linguagem como aquela empregada em ZFC, são funções (um caso especial de conjunto). E funções definidas sobre os números racionais devem permitir a identificação de imagens para todo e qualquer número racional. Como usualmente não se define divisão por zero, logo a divisão não é uma operação, mas apenas uma relação. As demais propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números inteiros (comutatividade, associatividade, elemento neutro, distributividade e simétrico aditivo) são copiadas entre os números racionais. Uma maneira de apresentar modelos para números racionais é através de classes de equivalência de pares ordenados de números inteiros (desde que certos cuidados sejam tomados em ZFC). Uma visão meramente intuitiva e indolor sobre essa construção de números racionais a partir de números inteiros pode ser encontrada neste link

É um erro comum afirmar que todo número inteiro é racional. Analogamente à discussão sobre naturais e inteiros, feita acima, entre os racionais existe uma cópia canônica dos números inteiros. De um ponto de vista meramente didático, gera-se muita confusão quando se afirma que todo inteiro é racional. Afinal, o número racional 3,000000... é conceitualmente diferente do inteiro 3. Isso porque números racionais podem ser representados por frações (uma vez que existe divisão). Por exemplo, 3,0000000... é igual a 30,00000... dividido por 10,00000... . No entanto, o inteiro 3 não é equivalente à razão entre os inteiros 30 e 10, uma vez que não é usual definir divisão entre inteiros. Quando um autor se refere ao racional 3,00000... através do símbolo 3, está apenas apelando para uma notação abusiva. 

O 3 inteiro é uma classe de equivalência de pares ordenados de naturais, enquanto o 3 racional é uma classe de equivalência de pares ordenados de números inteiros. As respectivas relações de equivalência que permitem definir tais classes de equivalência são discutidas nos links indicados acima. 

Números reais são diferentes de números racionais no seguinte sentido: além de admitirem cópias das propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números racionais, ainda garantem que toda sequência de Cauchy é convergente. A compreensão deste resultado demanda estudos sobre análise matemática. Números reais, do ponto de vista algébrico, constituem aquilo que se chama de corpo ordenado completo. Uma maneira simples para se apresentar um modelo de números reais a partir dos racionais é através de uma relação de equivalência entre sequências de Cauchy de racionais. Sequências de Cauchy de racionais que sejam convergentes (convergem para um racional) são representantes (em uma classe de equivalência) de cópias de racionais entre os números reais. Sequências de Cauchy de racionais que não sejam convergentes (não convergem para um racional) são representantes de números reais que não são cópias de racionais: estes são os conhecidos números irracionais. Uma explicação bastante acessível para este tipo de construção de números reais a partir de números racionais se encontra neste link

Já os números complexos são diferentes dos números reais no seguinte sentido: toda equação polinomial de uma variável, com coeficientes complexos, admite pelo menos uma raiz (Teorema Fundamental da Álgebra). Entre os números reais este resultado não vale. Por exemplo, a equação polinomial x^2 + 1 = 0 não admite solução entre os números reais, mas sim entre os números complexos. 

Portanto, o que diferencia números complexos de números reais são as propriedades algébricas da multiplicação. Todas as propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números reais são copiadas entre os complexos. No entanto, os complexos ainda permitem uma propriedade algébrica para a multiplicação que não pode ser copiada entre os reais: aquela que remete ao Teorema Fundamental da Álgebra.

Uma maneira simples de apresentar um modelo para números complexos a partir de números reais é através da definição de números complexos como pares ordenados de números reais. Não encontrei uma boa referência na internet para isso. Então explico rapidamente aqui mesmo. 

Um número complexo pode ser modelado como um par ordenado de números reais (rs), desde que as operações de adição e multiplicação sejam definidas da seguinte maneira:

(r, s)+(t, u) = (r+t, s+u)
(r, s).(t, u) = (r.t-s.u, r.u+s.t).

Observe que, do lado direito de ambas as igualdades, estamos usando apenas operações entre números reais: adição e multiplicação (uma subtração a - b é apenas uma adição de a com o simétrico aditivo de b). 

A partir dessas operações de adição e multiplicação entre complexos é possível provar os seguintes teoremas:

I) (0,0) é neutro aditivo entre complexos.

II) (1,0) é neutro multiplicativo entre complexos.

III) (-1,0) é simétrico aditivo de (1,0).

IV) (0,1) elevado ao quadrado [ou seja, (0,1).(0,1)] é igual a (-1,0).

O teorema IV é surpreendente! Garante a existência de um número complexo cujo quadrado é igual ao simétrico aditivo do neutro multiplicativo. Não acontece fenômeno análogo entre os números reais! Nenhum número real ao quadrado pode resultar em um número real negativo. E é este resultado dos complexos (Teorema IV) que viabiliza o Teorema Fundamental da Álgebra! 

Consequentemente, podemos demonstrar o seguinte resultado: todo número complexo (a, b) pode ser escrito na forma (a, 0).(1, 0) + (b, 0).(0, 1). O que isso significa na prática? Ora, todos os complexos da forma (a, 0) ou (b, 0) são cópias dos números reais, no sentido de satisfazerem todas as propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números reais. Logo, podemos abreviar (a, 0), (b, 0) e (1, 0) como simplesmente a, b e 1, respectivamente. Esta é uma notação abusiva, mas muito comum. Como a constante (0, 1) tem uma propriedade algébrica bizarra (se compararmos com os números reais), costuma-se denotá-la como i e chamá-la de unidade imaginária. Logo, a expressão

(a, 0).(1, 0) + (b, 0).(0, 1)

é simplesmente abreviada como

a + bi.

O erro comum entre livros didáticos está na afirmação de que a e b são números reais. Isso é falso! a e b são números complexos que são cópias canônicas de números reais. Não faz sentido algum afirmar que a e b são números reais. Afinal, como pode um número real b ser multiplicado por i (algo que evidentemente não é real) e ainda somarmos o resultado com o número real a? É esse tipo de erro que contribui muito em visões distorcidas da matemática entre alunos. 

Além de todos esses exemplos, ainda existem os números hipercomplexos, hiperreais, surreais, transfinitos, entre muitos outros. Quais seriam esses muitos outros? Bem, dependendo da fundamentação conjuntista adotada, os próprios conceitos de números naturais, inteiros, racionais, reais, complexos, hipercomplexos, hiperreais, surreais e transfinitos, mudam. A escolha de diferentes teorias formais de conjuntos acarreta em diferentes formulações para o conceito de número. Além disso, nada impede que tais conceitos de número sejam formulados em teorias formais axiomáticas que nada tenham a ver com conjuntos, como as formulações categoriais para a matemática

E, para finalizar esta postagem, quero também lembrar que a visão usual de que números reais servem ao propósito de medir (como se faz em física ou engenharias), apresenta outro tipo de limitação. Físicos e engenheiros não precisam necessariamente usar números para medir. 

Em seu célebre e brilhante livro Science Without Numbers, o filósofo Hartry Field apresenta uma convincente argumentação em favor do nominalismo em filosofia da matemática. Nominalismo em matemática se sustenta na tese de que objetos matemáticos simplesmente não existem ou, pelo menos, não existem na forma de conceitos abstratos. Neste contexto, Field mostra como desenvolver uma cópia da teoria gravitacional de Newton sem usar números.

Enfim, é bem possível que matemáticos simplesmente não saibam o que estão fazendo.
___________
Nota: Fui alertado agora há pouco (13/05/2015 - 22:16h) que existe sim uma ótima referência (em português) na internet para números complexos. Basta clicar aqui para acessar.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

PT e Satanás


Não faz parte do perfil deste blog a promoção de discussões de caráter político partidário. No entanto, preciso abrir uma exceção. A partir do momento em que aqui se discute sobre matemática e sociedade, não vejo mais como ignorar a atual situação política de nosso país, uma vez que ela afeta de maneira marcante diferentes segmentos sociais, incluindo ciência e educação. 

Sim. A bola da vez, o Partido dos Trabalhadores (PT), é o mal encarnado e institucionalizado. Não é por acaso que o símbolo deste partido seja uma estrela vermelha de cinco pontas. O PT é definido por membros e simpatizantes de índole radical, reacionária, intolerante, irracional, doutrinária e socialmente ácida. E Lula é o Anti-Cristo. Não são os casos escandalosos de corrupção, amplamente noticiados, que definem o PT. Os lucros da corrupção são apenas bônus para uns poucos membros do partido. É tão somente o extremo radicalismo em conjunção com a insaciável sede por poder que forja e alimenta o PT, o partido vermelho como o Diabo. 

Se o leitor não percebeu o tom irônico do parágrafo acima, então não conseguirá entender também o texto que segue abaixo. Nada posso fazer para ajudar. Então nem pense em responder a esta postagem.

Por que o PT é o mal? Por vários motivos mas, principalmente, porque o PT é um partido político brasileiro de poderosa e persistente influência. É um partido político que conquistou considerável influência nos últimos doze anos e que tem despertado atenção redobrada, por conta de denúncias de corrupção e de transações suspeitas com nações estrangeiras. Mas ainda é apenas um partido político. Quem lembra da Aliança Renovadora Nacional? Este foi outro partido que demonstrou a mesma sede pelo poder. Era o partido de sustentação política para o regime militar durante a ditadura. Um dos discursos recorrentes de militares ligados à ARENA era a paz social, a qual foi imposta, na prática, com tortura.

PSDB, PDT, PSOL, PV e todos os demais, no amalucado universo de 32 partidos registrados no TSE, têm exatamente o mesmo sonho molhado: conquistar e demonstrar poder. Mas este poder não é necessariamente em favor de ideais coletivos. Prova disso é o troca-troca de siglas entre deputados e senadores. Comumente a migração de "representantes do povo" converge para partidos com maior representatividade em casas como assembleias, câmaras e senado. Ou seja, o universo que define a política brasileira não é propriamente um universo de ideias e ações construtivas para a sociedade, mas de influências e demonstrações de poder.

Comparemos a política partidária brasileira com o decadente futebol de nosso país. O trecho que se segue foi extraído de um fórum do UOL:

"Os cartolas demagogos de plantão vivem dizendo que o maior patrimônio de um clube é a sua torcida. A frase é verdadeira. O problema é que eles falam isso da boca pra fora. O torcedor nunca é levado em consideração na hora de decidir sobre o time."

Já o trecho que se segue é de uma postagem no Facebook:

"O maior patrimônio de um país é o seu povo. Mas o que ocorre com as três esferas da administração pública que não investe no seu povo! [...] um povo sem educação, abandonado a sua própria sorte."

Agora vejamos esta outra afirmação de uma atleticana:

"O atleticano não torce por um time, torce por uma nação. E tal qual em uma guerra, um cidadão não renega um país. Mesmo que a derrota seja grande, o atleticano apoia seu time na derrota, pois os obstáculos engrandecem seu sentimento de nacionalismo."

E agora comparemos com este discurso de um deputado do PT:

"Não somos apenas um partido político. E vocês sabem disso. Quem é petista, como eu, sabe que não carregamos uma bandeira por acaso, e que não colocamos uma estrela no peito apenas para estampar o número de um candidato. Não amamos o PT, mas a ideia. E não adianta: ninguém consegue destruir uma ideia tão viva, tão humana, tão real."

Qualquer devaneio de imortalidade nada tem a ver com racionalidade ou bom senso. E, sem racionalidade, decisões acertadas dependem de mero acaso. 

Tenho percebido um perturbador fenômeno que fica muito claro em redes sociais como o Facebook, e que já começa a atingir até mesmo este blog: verdadeiras batalhas entre simpatizantes de esquerda e de direita, parecidíssimas com confrontos entre torcedores de futebol. E, enquanto torcedores ofendem e agridem uns aos outros, empresários faturam milhões com futebol. Enquanto simpatizantes do PSDB e do PT ofendem e agridem uns aos outros, inúmeros políticos e governantes praticamente abandonaram o seu país, concentrando esforços apenas em benefício próprio. 

É evidente que existem diferenças ideológicas entre partidos políticos, assim como existem diferenças fundamentais entre times de futebol. Mas futebol é apenas "válvula de escape" para parcela significativa da população. No entanto, política partidária é algo que define rumos de nossa nação. Por conta disso, é melhor pararmos de tratar partidos políticos como encarnações de ideologias que devem sobreviver, custe o que custar. Um partido político não é um time de futebol! (Repita isso cinco vezes diante do espelho.)

Definitivamente o PT não é a raiz dos problemas que o Brasil enfrenta, apesar de infindáveis discursos que ouço e leio sobre isso. Esta raiz está em cada um de nós, brasileiros. Qualquer pessoa que não consiga ver os benefícios que o PT trouxe para o nosso país é tão cega quanto aquela que garante que este partido é a única esperança para um Brasil socialmente justo. 

Nenhum partido político merece tanta devoção. Nenhuma pessoa merece tanta paixão ou tanto ódio vindo das massas, seja Lula, Dilma ou Fernando Henrique Cardoso. 

Dane-se o PT! Dane-se o PSDB! Danem-se os radicais de esquerda e os radicais de direita! Danem-se todos os miseráveis de espírito que dependem da vitória alheia para se sentirem bem consigo mesmos! Quando Lula assumiu a Presidência da República pela primeira vez, aquilo foi um belíssimo exemplo democrático do Brasil para o mundo. Mas este exemplo jamais deveria ser motivo para enaltecimento de Lula. Admiração, talvez. Mas nada além disso. Lula erra sim. E, se erra, deve assumir seus erros e abrir espaço para novas ideias, novas políticas. E o mesmo vale para qualquer governante. 

Quer defender algo até a morte? Defenda os seus filhos! Seus filhos precisam de um futuro em um país equilibrado, sóbrio, saudável, que abrace o futuro de seus netos e bisnetos. 

Ninguém mais dá a mínima para a ARENA! Isso porque a ARENA jamais foi importante a longo prazo. E, da mesma maneira, um dia o PT será apenas uma lembrança, assim como todos os demais e mesquinhos partidos políticos deste país. Mas nossos filhos viverão nessas terras, assim como os filhos deles. E o exemplo que definirmos hoje será fundamental neste futuro que nós mesmos jamais veremos. 

Se a revista Veja é politicamente tendenciosa, infeliz esquerdista, que tal você ler um bom livro e conversar com o seu filho sobre aquela obra? Se a Rede Globo é manipuladora das massas, que tal levar o seu filho a um bom museu? Se a Presidente da República acha que sua condição de mulher é tão importante a ponto de se auto-intitular de Presidenta, infeliz direitista, que tal colocar o seu filho em contato com diferentes discussões sobre gênero? Qual lealdade é mais importante: a lealdade partidária ou a lealdade ao seu filho?

Brasil é um país ignorante, de gente ignorante. Chega disso! Revoluções existem sim e são fundamentais. Mas as revoluções mais duradouras são aquelas feitas silenciosamente, sem gritos, sem ofensas intencionais, sejam físicas, morais ou psicológicas.

Teorias científicas revolucionaram o mundo: teoria da evolução, teorias da relatividade, física quântica, teoria dos conjuntos. Darwin, Einstein, Planck e Cantor não precisaram gritar ou ofender pessoas para impor suas ideias científicas e filosóficas. Ninguém precisou criar uma bandeira para a teoria da relatividade ou para a física quântica. Ideias sensatas vencem naturalmente, com o exemplo do benefício social, da construção. 

Se tem bandeira, é melhor que seja futebol. Se existe a honesta pretensão de um Brasil melhor, é de ideias e ações construtivas que precisamos. Não importa se essas ideias surgem de um petista ou de um cientista. Se a ideia é boa, ela naturalmente vencerá. Mas enquanto houver gente gritando em favor de bandeiras, será difícil sequer ouvir as ideias. E este Brasil está se transformando em uma terra ensurdecedora.