sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Os limites da liberdade de expressão


Nota Importante: Apesar de eu usar um exemplo recente da história política de nossa nação para ilustrar o problema da liberdade de expressão, insisto que o tema desta postagem é muito mais abrangente do que um simples processo eleitoral. Espero que o leitor não prejudique a leitura por conta de preferências pessoais sobre políticas partidárias. Não estou colocando aqui uma visão política partidária, mas apenas fatos extremamente importantes que devem ser conhecidos por todos.

Todas as postagens deste blog contam com um campo de avaliação, no qual leitores decidem se o texto publicado é bom, ruim ou indiferente. E a postagem que teve a pior avaliação até hoje foi aquela que criticava a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de proibir a propaganda de uma matéria de capa da revista Veja. Foram 13 leitores que avaliaram a postagem como ruim e 14 que avaliaram como boa. Ninguém se manifestou como indiferente.

A tese que defendi naquela postagem é que informações não podem ser censuradas, como foi o caso da revista Veja versus TSE. Ou seja, um dos fatores que está em jogo é a liberdade de expressão, bem como o direito à informação. É claro que a informação divulgada pela matéria de capa da revista Veja poderia ser falsa, uma vez que ela se sustentava em um depoimento de uma pessoa detida pela Polícia Federal que denunciava supostas ações criminosas da Presidente Dilma Rousseff, que na época se candidatava à reeleição. No entanto, há mais um fator em jogo que certamente não pode ser ignorado: liberdade de pensamento.

Qual é a diferença entre liberdade de expressão e liberdade de pensamento?

Liberdade de expressão é o direito de comunicar opiniões e ideias para qualquer pessoa disposta a ouvir ou ler tais opiniões e ideias. Neste sentido o Brasil é um país que permite, nos dias de hoje, certa liberdade de expressão. No entanto, ainda persistem alguns mecanismos naturais e artificiais para coibir essa liberdade. Isso porque a liberdade de expressão carrega em si uma armadilha. É muito difícil sustentá-la onde não há liberdade de pensamento.

Liberdade de pensamento é um direito que uma pessoa dá a si mesma para apoiar, se opor ou analisar criticamente um fato, um ponto de vista ou uma ideia, independentemente da opinião de outras pessoas. Ou seja, enquanto a liberdade de expressão de um indivíduo depende do contexto social onde vive, a liberdade de pensamento depende apenas dele mesmo. E é aí que reside o desagradável e não produtivo fenômeno social que transforma debates em embates. Este fenômeno ocorre em sociedades que contam com liberdade de expressão, mas não com liberdade de pensamento.

Consideremos o problema de ética jornalística. A revista Veja foi ética ao publicar matéria de capa, que claramente prejudicava uma candidata à Presidência da República, dois dias antes das eleições? 

Existe vasta literatura especializada sobre ética jornalística. E um dos mais atuais e relevantes trabalhos que vi sobre o tema está neste artigo de Theodore Glasser (Stanford University) e James Ettema (Northwestern University). O texto foi originalmente publicado no excelente Journalism Studies. De acordo com os autores, o maior problema da ética em jornalismo não é a inabilidade de diferenciar o certo do errado, mas a inabilidade de falar de forma articulada e reflexiva. 

A matéria de capa em questão estava escrita de forma articulada? Sim, sem dúvida. Estava escrita de forma reflexiva? Bem, esta é uma questão realmente difícil de responder. Isso porque uma revista como Veja certamente oferece um minúsculo leque de pontos de vista. Esta é uma limitação inerente a qualquer veículo de comunicação. Portanto, responder se a revista Veja foi ética ao publicar aquela matéria de capa naquele momento de sensibilidade política é extremamente complicado. Não há resposta fácil. Quem responder a esta questão de maneira decisiva com um simples sim ou não, corre o sério risco de estar dominado por emoções e não pela razão. E razão é justamente o instrumento usado para fins de reflexão. Não cabe apenas ao jornalista a responsabilidade da reflexão, mas ao público leitor também.

No entanto, a liberdade de expressão deve existir mesmo quando ainda não existe liberdade de pensamento. Isso porque a liberdade de expressão abre caminho para facilitar a liberdade de pensamento.

Diante de pontos de vista diferenciados, as pessoas têm às suas mãos informações que devem ajudar em suas próprias percepções. Mecanismos artificiais como a censura promovida pelo TSE comprometem a liberdade de expressão e, consequentemente, a liberdade de pensamento de cada um.

O leitor poderia argumentar o seguinte: "Tudo bem, mas a notícia era bombástica e foi divulgada dois dias antes das eleições. Portanto, não havia tempo hábil para reflexão."

Sim, é verdade. Reflexão demanda tempo e dois dias é um intervalo de tempo muito pequeno para uma tomada de decisão tão importante quanto a escolha de um candidato à Presidência da República.

Por isso mesmo jamais poderemos permitir censura de informações, sejam quais forem! Enquanto nação, ainda não estamos acostumados à prática do livre pensamento. Se errarmos em nossas decisões, seja por influência de uma revista semanal ou por influência de propaganda política, que aprendamos com isso. Mas impedir divulgação de informações é uma tentativa de castrar a liberdade de pensamento. E nosso país precisa de liberdade de pensamento.

Além disso é um erro assumir que toda reflexão feita de maneira responsável e bem informada necessariamente garante uma decisão com bons resultados. Em teoria das decisões sabe-se que a melhor decisão é aquela sustentada pela razão e não a que fornece os melhores resultados. Se uma pessoa joga na loteria e ganha um prêmio, ainda tomou a pior decisão. Isso porque jogos de azar não são racionalmente recomendáveis para aqueles que apostam. O apostador está sempre em desvantagem.

Liberdade de pensamento depende de liberdade de expressão, apesar de ser mais fundamental do que a última. 

Se você detesta a Presidente Dilma, coloque-se no lugar dela. Exercite sua liberdade de pensamento! Se você adora a Presidente Dilma, coloque-se no lugar daqueles que reclamam dela. Exercite sua liberdade de pensamento! Se você é um matemático, leia clássicos da literatura e conheça outras visões de mundo, conversando com especialistas em literatura. Exercite sua liberdade de pensamento! Se você é um especialista em literatura, leia textos sobre física e matemática e converse com físicos e matemáticos. Exercite sua liberdade de pensamento! Se você é comunista, converse com pessoas que viveram em países comunistas e que não suportam este regime. Se você é capitalista, converse com aqueles que são socialmente desamparados, esquecidos pelos donos do poder e do dinheiro. Exercite sua liberdade de pensamento!

O exercício da liberdade de pensamento não é uma postura relativista de mundo. É apenas a postura de quem ouve e genuinamente dá o melhor de si para entender mentalidades distintas. E, a partir disso, forma então uma visão de mundo. No entanto, quem é mentalmente livre sempre está aberto a mudanças de ideias e opiniões. 

Sem o empenho na busca da liberdade de pensamento, a liberdade de expressão sempre será sinônimo de caos e continuará sujeita à censura. O emaranhamento entre essas duas formas de liberdade é extremamente intrincado e delicado. 

Aprenda a ouvir! Aprenda a falar! No artigo de Glasser e Ettema, acima citado, os autores defendem que uma postura ética em jornalismo se identifica muito mais com um contínuo processo do que com resultados. Algo semelhante ocorre com o livre pensamento. Uma pessoa mentalmente livre não tem escolha a não ser o reconhecimento de que não existem respostas definitivas nem em ciência e muito menos em política. Mas existe a responsabilidade de todos nós para ouvir bem, falar bem e promover o bem. Então esqueçamos nossas vaidades e comecemos a realmente pensar e agir livremente. Pensar dói. Mas não pensar é se colocar nas mãos do acaso.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Resposta a um pedido


Com a devida autorização, reproduzo abaixo e-mail que recebi no dia 14 de novembro deste ano, de Guilherme Oliveira Santos. 

Normalmente não reproduzo e-mails neste blog, mas faço aqui uma exceção. Isso porque o texto foi escrito por um jovem estudante que demonstra uma rara combinação de preocupação com sensatez e esperança, a qual não percebo sequer na maioria dos professores universitários de nosso país. Além disso, existe outra motivação para a divulgação desta mensagem. O autor faz um pedido para que eu tome uma iniciativa que não posso realizar. Ao final da mensagem de Santos, apresento minha resposta.

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UFPR
de Guilherme Oliveira Santos

Boa tarde

Sou aluno do primeiro período do curso de Física da UFPR, acompanho o blog Matemática e Sociedade desde que decidi ser físico (final de 2012). Minhas impressões de por onde a educação deve permear, dentro de minhas limitações, alinha-se ao que o senhor vem discutindo em seus textos, como um ajuste meritocrático e mais autonomia universitária para contratação e demissão de professores. Com esta carta tenho a intenção de descrever brevemente o que penso sobre um equívoco específico dos alunos de graduação da UFPR e sobre um contra-ataque às ideologias dominantes nas universidades públicas.

Desde que iniciei os estudos no curso de Física, pude notar ao longo desse período alguns padrões de pensamento a respeito das visões políticas e econômicas que meus pares apresentam, e notei que há muita confusão sobre fenômenos de ação-reação, isto é, sobre a interferência política no funcionamento do mercado. Apesar de não ser trivial, devido ao fato de que a reação está distante da ação e por ter milhões de variáveis envolvidas, nota-se que os graduandos estão muito pouco familiarizados com esse conhecimento, quando não é de todo desconhecido; por exemplo: alguns alunos criticam veementemente a presidente Dilma Rousseff, mas durante as campanhas eleitorais afirmaram que prefeririam a candidata Luciana Genro porque, por algum motivo, acham as ideias dela melhores, talvez pelas falácias de que ajudaria os pobres taxando mais os ricos. Vejo aí um grande equívoco, pois para ajudar realmente os pobres é necessário menos boas-intenções e mais liberdade para empreender. Outros falam mal do comunismo, mas defendem intervenção estatal para regular o mercado e aspectos morais. São muitas inconsistências nos argumentos que utilizam para justificar seus posicionamentos. Aquilo me pareceu um pouco Keynesiano, sempre apoiados na ideia de um Estado gestor e interventor.

Onde quero chegar, professor, é em lhe fazer uma sugestão, e se talvez o senhor ministrar um minicurso ou algo semelhante, talvez colóquios, de forma que supra essa carência cognitiva, eu penso como um ponto de partida (para os universitários), visto que muitos dos estudantes têm tendência mais liberal, mas falta-lhes a compreensão das dimensões que isso toma em nossas vidas, por isso pensei que poderia servir como uma introdução a um conhecimento pouco esclarecido em nosso país. Um curso que poderia abranger sistemas complexos, lógica (para melhor compreensão dos argumentos), teoria dos jogos, estatística, empreendedorismo. 

Apesar da complexidade dos assuntos gosto de imaginar que é possível condensá-los de forma a nos tirarmos ao menos da lama intelectual em que estamos. Tenho uma ligeira preocupação, principalmente porque a maioria é sempre bem-intencionada, mas falham por falta de conhecimento consistente que lhes coloque em uma posição mais coerente com o que defendem, falta-lhes a ideia de que os meios são importantes serem definidos antes de tomadas de decisões parvas. Não quero com isso dizer que todos devem se importar, mas como estamos em tempos perigosos penso que seja interessante que nós (alunos) visualizemos o mundo por outras perspectivas.

Eu tenho otimismo (ou ingenuidade) quanto a isso, pois ao menos um dos meus colegas já está lendo von Mises. Tenho a impressão de que, aumentando a divulgação de ideias que aproximam a matemática e a física das ciências humanas, pode vir a ser benéfico para a comunidade acadêmica. A ideia é desmistificar os 'engenheiros sociais', sociólogos, filósofos, pedagogos, que de forma geral se manifestam com ojeriza aos mais bem sucedidos e insistem que o melhor é sermos iguais, sem levarem em consideração a liberdade de escolha de cada um.

Devido à irrisória divulgação de pensamentos liberais, ainda mais fundamentados matematicamente, vejo isso como a abertura de uma janela de oportunidades por meio de uma transmissão de conhecimento que provoque os alunos a questionarem através da matemática e da lógica o que acontece em nosso país. Imagino que seria uma boa incitação a saírem da morbidez. 

Estou agradecido pela atenção.
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Segue abaixo minha resposta ao e-mail de Santos.

Eu já tentei realizar isso anos atrás, no contexto dos Seminários Analice Gebauer Volkov. Esses seminários eram divididos em duas categorias: técnicos e de divulgação. Nos seminários técnicos eram realizadas atividades para o desenvolvimento de projetos de pesquisa interdisciplinares. Já os seminários de divulgação eram marcados por palestras de caráter geral ministradas por profissionais de diferentes áreas do saber. Tivemos palestras sobre jornalismo, genética, filosofia, psicanálise, matemática, física e até zoologia, entre outros temas. Eram trazidas pessoas de diferentes partes do país e do mundo para apresentarem essas palestras. 

No entanto, aos poucos, os seminários de divulgação científica passaram a contar com cada vez menos pessoas interessadas. E eu não queria mais trazer profissionais altamente qualificados para ministrarem palestras diante de públicos que não chegavam a dois dígitos. É muito difícil desenvolver uma visão interdisciplinar em uma universidade como a UFPR. Mas, este problema não é exclusivo da UFPR. Lembro que anos atrás John Casti tentou criar, na América Latina, algo equivalente ao Santa Fe Institute, um centro de excelência no estudo de sistemas complexos. Muitos brasileiros conversaram com ele, incluindo eu mesmo. Mas não teve jeito. Não há massa crítica suficientemente articulada (nem no Brasil e nem no resto da América Latina) para uma iniciativa como essa. 

Quanto aos seminários técnicos, também foram cancelados, por conta de circunstâncias que prefiro não detalhar neste momento. É uma longa história.

Um exemplo melhor sucedido de promoção de visão interdisciplinar é a equipe Polyteck. Mas não sei até quando eles conseguirão resistir.

O que faço hoje, na UFPR, para estimular visões diferenciadas, é muito pouco em termos de resultados. Mas ainda é algo que pode fazer alguma diferença. Neste semestre letivo, por exemplo, tenho duas turmas no Curso de Matemática. Uma dessas turmas tem três alunos que frequentam regularmente as aulas. E a disciplina é Teoria de Conjuntos. O que estou fazendo com esses três alunos é um projeto de pesquisa que resultará em artigo a ser publicado em parceria comigo e Otávio Bueno. São cinco pessoas que estão desenvolvendo teoria de categorias no contexto de uma nova visão da teoria de conjuntos de von Neumann. Existem várias consequências para este trabalho, que poderão repercutir até mesmo no ensino médio. Oportunamente darei detalhes sobre isso, quando o artigo for aceito para publicação. No momento ainda estamos redigindo o texto e finalizando detalhes técnicos.

Ou seja, é possível sim colaborar de maneira construtiva para o crescimento do país. Mas a inércia a ser vencida é simplesmente gigantesca. Essa turma de três alunos que tenho neste semestre é uma exceção. São três jovens brilhantes e fortemente motivados. Só espero ver algo semelhante no futuro daqui a uns dez anos. Até lá, o negócio é ter paciência.

sábado, 22 de novembro de 2014

Dez mitos sobre educação


Apresento a seguir uma breve lista de dez mitos sobre educação muito conhecidos principalmente entre alunos.

Mito 1: Eu sei a matéria, mas não sei explicar.

Fatos: Conhecimento não é uma entidade metafísica. Ele tem um corpo material manifestado pelo emprego de linguagem.

Conhecimento só pode se manifestar pelo uso de linguagem, assim como pessoas só podem existir na forma de corpos humanos vivos. 

Se uma pessoa não consegue explicar algo é porque não sabe usar a linguagem. E, portanto, não tem o conhecimento.

Mito 2: Tirei zero porque me deu um branco na hora da prova.

Fatos: Pessoas saudáveis não esquecem aquilo que é familiar. Pessoas saudáveis não esquecem seus próprios nomes ou o lugar onde vivem.

Se uma pessoa saudável esquece algo é porque este algo não é ainda familiar.

Para que o conhecimento se torne familiar é necessário que se conviva com ele diariamente e não apenas em uns poucos momentos de sua vida.

Mito 3: O professor sabe a matéria, mas não sabe explicar. Por isso que eu não entendo.

Fatos: Como no primeiro mito, se o professor sabe a matéria, certamente deve saber explicar. Se não sabe explicar, é porque não sabe a matéria.

Se um aluno saudável não entende um assunto exposto em sala de aula, ele deve conversar com outros professores e ler bons livros para sanar suas dúvidas.

Se um aluno desconfia que possa estar sofrendo de algum distúrbio que prejudica seu rendimento escolar, deve procurar ajuda profissional. Em muitos casos de distúrbios físicos e mentais existem tratamentos bastante eficientes.

Mito 4: Aquele professor sabe ensinar. Entendo tudo o que ele diz.

Fatos: Se um aluno entende tudo o que um professor diz é porque este professor só fala assuntos triviais sem interesse científico algum. 

Todas as áreas do conhecimento científico são de difícil compreensão até mesmo entre cientistas.

Portanto, se um aluno entende tudo o que um professor diz, é melhor começar a estudar de verdade em bons livros e conversar com professores realmente críticos e exigentes.

Mito 5: Estudei o fim de semana inteiro e ainda fui mal na prova.

Fatos: Este se relaciona com o mito 2. Estudo intensivo em curto intervalo de tempo não permite familiarização com o conhecimento.

Todo conhecimento científico demanda tempo de reflexão e análise crítica. 

Assim como não é possível se tornar um atleta em um fim de semana, também não é possível conhecer qualquer ramo relevante da ciência em dois dias.

Mito 6: O professor é o transmissor de conhecimento.

Fatos: Professores não transplantam seus cérebros para a cabeça de seus alunos. 

Assim como bons professores precisaram de anos para se familiarizarem com certos ramos do conhecimento, alunos também precisam se dedicar diariamente em seus estudos.

Professores são meros orientadores. Eles devem apenas indicar o que deve ser estudado e questionar criticamente seus alunos.

Mito 7: Caiu na prova justamente aquilo que não estudei.

Fatos: Conhecimento científico não é fragmentado. A beleza da ciência radica justamente nas relações entre temas aparentemente distintos.

Se o aluno não estudou um tópico específico da matéria discutida em sala de aula é porque carece de uma visão mais ampla.

Para evitar isso, é fundamental o estudo diário e a frequente reflexão e discussão sobre os assuntos estudados.

Mito 8: Não faço perguntas em sala de aula porque nem sei o que perguntar.

Fatos: Se o aluno não sabe o que perguntar é porque está completamente perdido em sala de aula.

No caso de ensinos fundamental e médio, a solução é imediatamente procurar ajuda do professor, da família e de amigos.

No caso de ensino superior, o aluno deve ser honesto consigo mesmo e avaliar se está no curso certo.

Mito 9: Se eu estudar demais, vou comprometer minha vida social.

Fatos: Jamais é possível estudar demais. Ainda não existem indícios de limites cognitivos para pessoas saudáveis.

Se uma pessoa estuda destacadamente mais do que aqueles que habitam seus círculos sociais, com o tempo ela provavelmente vai apenas mudar seus círculos sociais.

Mito 10: Quem estuda demais fica louco.

Fato: Não.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Patrick Suppes


Na manhã de 2 de maio de 1994 defendi minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo. Durante o almoço, logo após a defesa, meu co-orientador, Professor Francisco Doria, perguntou: "E então? Quer ir pra Stanford?" Respondi com um imediato sim.

Meses depois recebi uma carta de Patrick Suppes, com um convite para eu realizar estágio de pós-doutoramento na Universidade Stanford. Em 1995 eu desembarcava com minha (então) esposa e meu filho de quatro anos no aeroporto de San Jose, California. De lá pegamos táxi para um hotel em Mountain View, no Vale do Silício. No dia seguinte cheguei a Ventura Hall, em Stanford, e me apresentei a Suppes. Ele demorou alguns segundos para entender quem, afinal de contas, era aquele sujeito de sotaque esquisito. Afinal Suppes pronunciava meu nome como Édonai. 

Assim que a breve confusão foi desfeita, Suppes imediatamente chamou sua secretária para me ajudar na localização de um apartamento para alugar. Na época havia uma única opção: um apartamento de dois quartos, com uma ampla sala, pela bagatela de 925 dólares por mês. O apartamento ficava em Menlo Park, local que sedia a mais antiga estação ferroviária da California.

Uma orientada de Suppes também foi convocada. Ela me deu carona de volta ao hotel e, de lá, a família toda se dirigiu ao apartamento. Suppes já havia conversado com a dona do imóvel por telefone. E, com um pouco de negociação, consegui convencê-la a alugar o apartamento a partir daquele mesmo dia.

Logo depois retornei a Ventura Hall e conversei brevemente com Suppes. Ele tinha compromissos naquele dia e me deu carona para fora do campus, em seu Mercedes-Benz. No caminho Suppes perguntou no que eu estava trabalhando. Expliquei que minha tese de doutorado era sobre teoria de categorias. Ele respondeu com um simples aham. Naquele instante entendi que era ele quem decidiria no que eu deveria trabalhar.

No dia seguinte Suppes explica que precisará viajar por alguns dias e recomenda que eu leia o livro The Quantum Vacuum, de Peter Milonni. Ele queria que eu trabalhasse em um modelo semiclássico para a física quântica, o qual havia iniciado em parceria com outro brasileiro, José Acacio de Barros. Suppes tinha um interesse específico no efeito Casimir.

Meu conhecimento sobre física quântica, na época, se limitava ao regime não-relativístico. Eu não sabia coisa alguma sobre eletrodinâmica quântica. Mas tinha que dominar os requisitos necessários para começar a discutir sobre um possível modelo corpuscular para o efeito Casimir, até o seu retorno, que se daria em alguns dias. 

Comprei o livro de Milonni na livraria de Stanford e um notebook Toshiba no Walmart. E então comecei a trabalhar. Por sorte a obra de Milonni era muito bem escrita, objetiva e clara. Todos os dias eu estudava na minha sala, em Ventura Hall, e em casa. 

Ao retornar de viagem, Suppes organizou seminários semanais sobre estatística e física, com a participação de gente do calibre de Max Dresden, que na época trabalhava no Stanford Linear Accelerator Center (SLAC). Foi Dresden quem deu a ideia que viabilizou a concepção do tal modelo corpuscular semiclássico para o efeito Casimir. 

Em um ou dois dias as equações básicas para o modelo estavam no papel. Suppes se empolgou com as contas iniciais. Mas, com o tempo, se mostrou bastante cético. Poucas semanas depois chega Acacio de Barros, que se envolve no projeto. 

Suppes, Acacio e eu conversávamos diariamente. Para cada dia havia uma nova versão do artigo, que era exaustivamente analisada. 

Acacio foi uma das pessoas mais criativas que já conheci. Era uma fonte inesgotável de ideias e um curioso compulsivo. Paralelamente ao projeto sobre o efeito Casimir, ele pensava nas relações entre física clássica e o teorema de Bell, da mecânica quântica.

Lá pela quinquagésima versão, o artigo foi submetido para publicação em Foundations of Physics Letters. Lembro que eu havia questionado com Suppes sobre a origem de nossa fórmula para a energia do estado de vácuo. Expliquei a Suppes que naquele artigo não havia uma única justificativa para aquela fórmula, apesar do formalismo canônico usual da eletrodinâmica quântica permitir a dedução dela. Ele então respondeu: "Temos que assumir algum ponto de partida". Ou seja, Suppes sugeriu que nossa fórmula funcionava como uma espécie de postulado. 

Semanas depois vieram os pareceres sobre o artigo. Um dos referees questionou justamente a origem de nossa fórmula para a energia do vácuo. Suppes olhou para mim, com a carta do editor na mão, e perguntou: "A gente havia conversado algo a respeito disso, não foi?" E, ingenuamente, respondi: "Sim. O senhor havia dito que deveríamos assumir algum ponto de partida." Suppes não gostou muito de minha impertinência.

Nesse meio tempo Acacio apresentou a ideia de provar a violação das desigualdades de Bell no contexto da eletrodinâmica clássica. Achei aquilo muito esquisito, mas Suppes se empolgou com a ideia. 

Nós três começamos a trabalhar em dois novos artigos: um sobre o teorema de Bell na eletrodinâmica clássica e outro sobre o teorema de Bell no modelo corpuscular semiclássico para física quântica. 

Questionei tanto as ideias de Acacio que Suppes chegou a brigar comigo. Aquele foi um dia realmente difícil. Senti-me uma espécie de criador de caso. Acacio, no entanto, encarava minhas críticas de forma completamente diferente. Ele percebia que provar a violação das desigualdades de Bell em regime clássico era uma ideia extremamente ousada e, portanto, questionável. Mesmo assim o artigo foi submetido para publicação, desta vez em Physical Review Letters.

Por tremendo azar, aquele trabalho caiu nas mãos de um referee absolutamente primário, que sequer conhecia noções elementares sobre teoria de probabilidades. Acacio e eu ajudamos Suppes a escrever a resposta ao referee. Mas não teve jeito. O artigo foi recusado.

Resumindo a história, o trabalho sobre o efeito Casimir foi publicado, bem como o artigo sobre o teorema de Bell no modelo corpuscular semiclássico. Mas o projeto sobre violação das desigualdades de Bell na eletrodinâmica clássica se limitou a um preprint ainda disponível na internet. 

Após um ano, chegou o momento de retornar ao Brasil. Acacio já havia partido há algum tempo. Em meu último dia em Stanford, Suppes deixou um artigo sobre minha escrivaninha, na sala que eu havia dividido com um americano, uma chinesa e, posteriormente, com um casal de franceses. Era um texto sobre o papel do filósofo da ciência na atualidade, que exerce forte influência sobre mim até hoje. Poucos dias antes, minha esposa, meu filho e eu jantamos com Suppes e uma de suas filhas. Ou seja, não ficaram mágoas, apesar dos atritos em uns poucos momentos.

Em seu último livro, uma espécie de memorial de toda a sua obra em filosofia da ciência, Suppes faz um agradecimento a mim, algo que me honra muito. Também recebi pelo correio uma cópia deste livro com uma exagerada dedicatória. 

Certamente não estou entre os colaboradores mais importantes de sua carreira. Mas pelo menos guardo um pouco deste contato pessoal e profissional que durou um ano e que era praticamente diário, chegando a ocorrer até mesmo em alguns domingos. 

Eu poderia ter escrito nesta postagem um texto melhor comportado, menos pessoal, destacando as contribuições de Patrick Suppes à filosofia, à matemática, à estatística, à psicologia, à educação, à neurologia e à física teórica. Poderia também ter detalhado por que Patrick Suppes recebeu do Presidente George H. W. Bush a Medalha Nacional de Ciência, o mais importante prêmio científico dos Estados Unidos. Mas sei que muitos escreverão sobre essas conquistas a partir do dia de hoje. Isso porque ontem Patrick Suppes faleceu, deixando um legado ainda muito ignorado no Brasil mas amplamente lembrado em todo o resto do planeta. 

Aliás, a última vez em que vi Suppes foi justamente no Brasil, quando esteve em Florianópolis, em evento que prestava homenagem a ele. São poucos os filósofos brasileiros que conhecem algo sobre a magnífica obra de Patrick Suppes. Mas esses poucos bastaram para atrair a sua atenção para o nosso país. 

Suppes conhecia melhor a produção de filósofos, físicos e matemáticos brasileiros do que a maioria de nós mesmos. E este é um dos aspectos que mais pude admirar neste grande pensador.

Em contrapartida, quando tentei traduzir seu último livro para o nosso idioma, recebi de editores a resposta de que esse tipo de literatura não interessa ao mundo acadêmico brasileiro. Afinal, quem se interessa por isso já lê diretamente o texto original. 

Houve desencontros sim, entre Suppes e eu. E esses desencontros são extremamente comuns entre pesquisadores. Mas, no final das contas, ainda era o conhecimento científico que falava mais alto. 

Suppes foi generoso o bastante para prefaciar meu primeiro livro, confiando em um breve resumo em inglês que fiz da obra, hoje praticamente esquecida. Manteve-me atualizado sobre seus últimos estudos a respeito do cérebro humano, publicados em Proceedings of the National Academy of Sciences. E, mais importante do que tudo, ensinou-me que o avanço da ciência depende fundamentalmente de riscos. Ser alvo de críticas (vindas de referees ou mesmo de colegas) jamais deve ser traduzido na forma de covardia travestida de cautela. 

Ciência é ousadia. E esta lição aprendi com Patrick Suppes (1922-2014), o mestre que hoje descansa fisicamente, mas que respira através de sua perene obra.

sábado, 15 de novembro de 2014

O que há de errado com as instituições privadas de ensino superior?


Educação é responsabilidade do Estado? Sim. Mas este saber comum tem sido gravemente distorcido por representantes do ensino superior da iniciativa privada de nosso país. Isso porque educação não é responsabilidade apenas do Estado, mas de todos nós.

Recentemente publiquei na página Facebook deste blog que a Universidade Stanford, referência mundial em termos de ensino superior e pesquisa, é uma instituição privada sem fins lucrativos, com orçamento de cinco bilhões de dólares e isenta de tributação federal. Pois bem. Em nossa nação, instituições educacionais sem fins lucrativos também são imunes do imposto sobre a renda, como ocorre nos Estados Unidos, país que abriga Stanford. No entanto, órgãos como o Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (SEMESP) frequentemente reclamam da carga tributária incidente sobre universidades privadas. Neste link o leitor pode acessar uma simulação promovida pelo próprio SEMESP em uma instituição hipotética com 500 alunos, na qual o lucro líquido é de apenas 6,06%, diante de uma tributação de 15%. E como o imposto de renda pode atingir até 30% do montante tributável, isso restringiria muito mais a margem de lucro. 

Mas o que mais perturba em um órgão como o SEMESP é o parecer de seu presidente, Hermes Ferreira Figueiredo, que afirma: "A carga tributária do Brasil é uma das mais altas do mundo. As garantias de educação e saúde, que são responsabilidades do Estado, ainda deixam a desejar.

Bem, se um empresário deseja lucro, por que trabalhar com educação? O lucro real da educação não é financeiro, mas social. Educação é responsabilidade sim do Estado, mas não apenas do Estado. Existe alguma universidade privada em nosso país que se aproxime de Stanford em termos de qualidade de produção de conhecimento? Não, claro que não. E por quê? Porque os empresários que administram as universidades privadas de nosso país não demonstram o mais remoto interesse nem por educação e nem por pesquisa. Se querem lucro, que vendam papel higiênico. Papel higiênico é um bem necessário em qualquer país civilizado, apesar de substituível por outras formas de papel. Mas educação não pode ser tratada da mesma forma. Educação é uma responsabilidade da sociedade como um todo, incluindo empresários.

Por que lucrar com educação? Não bastam salários compatíveis com as funções exercidas? Por que alimentar o desejo de ganhar fortunas com educação, se existem inúmeras outras formas de investimento para buscar lucros? Educação e saúde jamais deveriam ser encarados como oportunidades de lucro. Isso porque nenhuma sociedade se sustenta sem saúde e educação. 

Somente no ano fiscal de 2013-2014 a Universidade Stanford arrecadou quase um bilhão de dólares a partir de 82.300 doadores. Por quê? Porque esta universidade beneficia e é beneficiada por toda uma comunidade local e internacional que deseja ver esta instituição crescendo mais ainda em termos de influência e não de tamanho. E as universidade privadas de nosso país? Quais são os benefícios reais delas às comunidades locais e internacionais? 

Certamente existem muitas instituições privadas de ensino superior no Brasil que promovem programas sociais relevantes. Mas qual seria o alcance de tais programas se essas instituições abrissem mão de seus lucros e fossem gerenciadas por comissões formadas por representantes dos principais segmentos sociais diretamente envolvidos, como ocorre em Stanford? Por um lado, o fim do lucro aumentaria consideravelmente a receita dessas instituições e, por outro, estimularia várias pessoas físicas e jurídicas a fazerem generosas doações, como forma de agradecimento. Não seriam apenas as pessoas institucionalmente vinculadas que vestiriam a camisa da instituição, mas também demais membros das comunidades local e internacional. 

Outra consequência natural do fim dos lucros seria a oferta de salários competitivos para professores, o que permitiria a contratação dos melhores docentes e pesquisadores. E, claro, haveria mais verbas para pesquisa e programas sociais. 

Ou seja, pelo menos do ponto de vista tributário, há espaço para a criação e/ou manutenção de universidades privadas de destaque internacional em nosso país. Resta apenas saber se há espaço do ponto de vista social. Menos de 14% dos jovens bolsistas do Programa Ciência Sem Fronteiras do Governo Federal estão nas cem melhores universidades do mundo, de acordo com critérios da Times Higher Education. Ou seja, mesmo recebendo bolsas de estudos, nossos alunos de ensino superior ainda demonstram incompetência ou medo, quando o assunto é excelência. Por que, no início do Ciência Sem Fronteiras, tantos jovens procuraram instituições portuguesas? Por conta de dificuldades para lidar com idiomas estrangeiros. Isso é covardia e incompetência. 

O que há de errado com as instituições privadas de ensino superior de nosso país? É o mesmo que há de errado no país inteiro: falta-nos visão, ambição e ousadia. Afinal, o que querem os empresários da rede privada de ensino superior? O objetivo é ganhar mais, fazendo menos; ou fazer mais e melhor, ganhando um salário digno?

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O conflito entre ciência e inovação


The "thousand profound scholars" may have failed, first, because they were scholars, secondly, because they were profound, and thirdly, because they were a thousand. 

Edgar Allan Poe
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Pensamento de grupo é um fenômeno psicológico que ocorre em coletividades de pessoas, no qual o desejo pela harmonia e perpetuação do grupo implica em tomadas de decisões irracionais ou disfuncionais. Este fenômeno é facilmente identificável em casos extremos de gangues criminosas que cometem atrocidades impossíveis de serem realizadas se seus membros não fizessem parte dessas gangues. No entanto, a questão difícil de responder é se pensamento de grupo não afeta de maneira irracional e disfuncional o próprio avanço da ciência.

Ciência está diretamente relacionada ao conhecimento proposicional. E todo conhecimento proposicional pode ser colocado na forma "S sabe que p", onde S é o indivíduo que sabe e p é a proposição que é conhecida. Portanto, ciência é algo que pode ser socialmente compartilhado. Alguns indivíduos sabem e outros não sabem, quando o contexto é alguma proposição p. E, neste sentido, ciência tem um caráter estático. Isso porque conhecer uma proposição p é algo que não muda p

Inovação, por outro lado, é uma operação que, entre outras coisas, age sobre proposições, alterando-as. Logo, ciência e inovação são fenômenos humanos conflitantes. 

Diante disso tudo, o que é o avanço científico? É simplesmente uma constante luta entre ciência e inovação.

Não são raras as pessoas que questionam a institucionalização da ciência, promovida por universidades e centros de pesquisa. Mas são raras as pessoas que percebem a incompatibilidade entre ciência e inovação, usualmente colocadas lado a lado como se fizessem parte de uma mesma missão socialmente nobre e promovida por membros da gangue acadêmica mundial. 

Se um cientista pensa de maneira diferente, em relação aos seus colegas, como ele será percebido? Ele será necessariamente identificado como um promotor de avanços científicos ou como um marginal que apenas gera desconforto, rompendo a harmonia da comunidade acadêmica?

Os estudos de história e fundamentos da ciência ajudam a ilustrar muito bem as ideias acima expostas. Por exemplo, alguém sabe o que é matemática? Não existe uma única definição clara, objetiva e abrangente o bastante para contemplar todas as áreas de estudo da matemática. No entanto, em todas as universidades e centros de pesquisa existe um senso de unanimidade de que há uma área do saber conhecida como matemática. Isso ocorre em função da dominante necessidade de pensamento em grupo, o qual colabora em favor de um senso de harmonia no mundo acadêmico, mas compromete qualquer princípio de inovação. Há vários exemplos históricos que ilustram isso. Um dos mais conhecidos é o axioma da escolha, que criou gigantesca polêmica entre matemáticos da primeira metade do século 20. Isso porque, inicialmente, o axioma da escolha não era ciência. Hoje é.

Ciência é um fenômeno social. Inovação é um fenômeno individual. A luta entre ciência e inovação é um drama épico, uma batalha entre indivíduos e sociedades. Daí a ingratidão da atividade científica. Abraçar uma carreira científica sempre envolve um processo de escolha entre liberdade de pensamento e ciência. E ser professor é algo mais ingrato ainda. Isso porque professores comumente são obrigados a impor ciência aos seus alunos ao invés de estimular a liberdade de pensamento. 

É claro que não pode existir liberdade de pensamento sem ciência. É preciso conhecer proposições p para somente então questioná-las e, quem sabe, mudá-las. E este fato apenas piora o problema da inovação. Isso porque além da batalha entre indivíduos e sociedades, existe ainda uma batalha de indivíduos contra eles próprios. Se o conhecimento de uma proposição p implicar na crença de p, este estado pode dificultar muito qualquer operação de inovação que modifique p

Nunca na história da humanidade houve tanta veiculação de artigos científicos quanto nos dias de hoje. Milhares de periódicos especializados publicam milhares de artigos supostamente inovadores. Mas, a partir do momento em que um artigo de pesquisa é aceito para publicação sem qualquer resistência, podemos garantir que ele representa alguma inovação de fato? Ou será que a maioria dos artigos científicos hoje publicados são simplesmente justificativas para garantir que a ciência de hoje está passando muito bem, obrigado?

domingo, 9 de novembro de 2014

Quem é realmente beneficiado pela Medalha Fields?


Em documento redigido no dia 12 de janeiro de 1932, o canadense John Charles Fields propôs que "duas medalhas de ouro sejam entregues por ocasião de sucessivos Congressos Internacionais de Matemática, como forma de reconhecimento de conquistas significativas em matemática. Por conta da multiplicidade de ramos desta área e levando em conta o fato de que o intervalo entre tais congressos é de quatro anos, pelo menos duas medalhas deveriam ser entregues." Fields ainda complementa seu documento, afirmando que esta medalha não deveria ser apenas um reconhecimento de trabalho já realizado, mas também "um encorajamento para o ganhador investir em pesquisas futuras, bem como um estímulo para o esforço renovado dos demais."

Pois bem. A primeira Medalha Fields, hoje reconhecida como o mais importante prêmio em matemática, foi outorgada em 1936 para Lars Ahlfors (Finlândia) e Jesse Douglas (Estados Unidos). A última foi concedida este ano para Maryam Mirzakhani (Irã), Martin Hairer (Áustria), Manjul Bhargava (Canadá, Estados Unidos) e Artur Ávila (Brasil, França). Ao longo de 78 anos de premiação para 56 matemáticos de 21 países (Finlândia, Estados Unidos, França, Noruega, Japão, Reino Unido, Suécia, Rússia, Itália, Bélgica, China, Alemanha, Ucrânia, Nova Zelândia, África do Sul, Austrália, Israel, Vietnã, Áustria, Irã e Brasil), o que se pode dizer sobre os sonhos de John Charles Fields? A Medalha Fields cumpre com o papel idealizado pelo seu criador? Esta é uma daquelas perguntas que não se responde com um simples sim ou não.

Em artigo a ser publicado em 2015 no periódico Journal of Human Resources, George J. Borjas (Harvard University) e Kirk B. Doran (University of Notre Dame) promovem uma detalhada análise do impacto da Medalha Fields sobre aqueles que conquistaram este importante prêmio. Para o leitor interessado em uma versão preliminar deste artigo, basta clicar aqui

As conclusões de Borjas e Doran certamente abrem espaço para discussões aprofundadas até mesmo sobre os méritos da meritocracia. Daí a importância deste artigo. Estes autores avaliaram a produtividade científica de um universo de 72 mil matemáticos espalhados pelo mundo, de acordo com banco de dados da American Mathematical Society, que leva em conta profissionais com pelo menos vinte anos de experiência. 

Por um lado, a média de produção científica de matemáticos é inferior a 32 artigos durante toda a carreira. Por outro lado, medalhistas Fields publicam acima de 116 artigos durante a vida profissional. Mas, curiosamente, os matemáticos concorrentes que não conquistaram este prêmio apresentam uma produção média ligeiramente superior, com 126 artigos. Até aí, esses números pouco revelam. O resultado realmente curioso é a comparação de produção científica entre aqueles que conquistaram a Medalha Fields e aqueles que concorreram mas não ganharam. Basta ver o gráfico abaixo.



Enquanto a linha vermelha indica produção científica (somente em termos de quantia de publicações) de ganhadores da Medalha Fields, a linha azul corresponde à produção de concorrentes que não conquistaram esta honraria. Ou seja, a produção matemática de medalhistas cai em quantidade logo após o recebimento do prêmio, enquanto os demais aumentam a produção. 

E quanto a impacto de pesquisas? De acordo com Borjas e Doran, medalhistas Fields apresentam uma média de 64 citações ao ano, enquanto concorrentes não contemplados apresentam uma média de 56 citações ao ano. Portanto, a diferença é pequena e certamente carrega em si o prestígio social da Medalha Fields. Em termos de impacto, ambas as categorias estão muito acima da média de 2,5 citações ao ano, no universo de 72 mil matemáticos existentes no mundo, de acordo com parâmetros acima citados da American Mathematical Society

Outra informação relevante levantada por Borjas e Doran é a identificação de matemáticos que transformaram completamente esta ciência e que não foram contemplados pela Medalha Fields. Exemplos bem conhecidos são George Lusztig e John Tate, entre muitos outros. Há pelo menos quatro fatores arbitrários que justificam este fenômeno: o intervalo de quatro anos entre uma premiação e a próxima, a limitação de premiação para quatro matemáticos (no máximo), a restrição de idade (indivíduos com mais de 40 anos de idade não podem concorrer) e tendências de valorização de certas áreas da matemática em detrimento de outras. Segundo Borjas e Doran, os matemáticos contemplados pela Medalha Fields fizeram contribuições que não cobrem sequer metade das grandes conquistas matemáticas realizadas nos últimos 80 anos. 

Naturalmente existem muitas outras formas de reconhecimento de mérito de pesquisa. Mas, em matemática, nenhum outro prêmio é tão impactante do ponto de vista social quanto a Medalha Fields. 

Mas voltemos agora à questão de queda de produção e o que isso tem a ver com o título da postagem.

Sabendo que a conquista do Prêmio Nobel em Economia não altera de forma alguma a produtividade dos contemplados, fica então uma questão: por que a produção científica de matemáticos ganhadores da Medalha Fields diminui? 

De acordo com o artigo de Borjas e Doran, ocorre um bizarro fenômeno comportamental entre ganhadores da Medalha Fields. Existe uma forte tendência para esses matemáticos migrarem seus interesses intelectuais para áreas do conhecimento não exploradas antes da conquista do prêmio. Pelo menos metade da queda de produção pode ser atribuída a esta propensão à experimentação.

Ou seja, a Medalha Fields serve de estímulo para o contemplado investir em futuras pesquisas? A resposta é positiva se olharmos do ponto de vista de uma necessidade individual de exploração de novos territórios. A resposta é negativa se olharmos do ponto de vista de pesquisas anteriormente realizadas. 

A Medalha Fields serve de estímulo para os concorrentes não contemplados? A resposta é negativa se olharmos do ponto de vista de uma necessidade individual de exploração de novos territórios. A resposta é positiva se analisarmos do ponto de vista de um senso de continuidade de pesquisas anteriormente realizadas.

Portanto, examinemos outros dois pontos de vista: o institucional e o social.

Artur Ávila foi o primeiro brasileiro a conquistar a Medalha Fields. E ele conta com um vínculo no Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), no Rio de Janeiro. Analisando os resultados de Borjas e Doran, fica claro que os principais beneficiados por esta conquista são o IMPA e o Brasil. Por quê? Porque esta conquista definitivamente impulsiona outros jovens matemáticos a buscar as grandes conquistas. 

Para o indivíduo não deve fazer tanta diferença assim se ele ganha a Medalha Fields ou o Prêmio Nobel. Esta preocupação deve ser prioritariamente institucional e social. Instituições e segmentos sociais devem sim fazer campanhas internacionais para indicar seus mais brilhantes pesquisadores para fins de premiação, como fez o IMPA em várias ocasiões. Este incentivo exerce poderosa influência sobre muito mais gente do que apenas uma pessoa indicada.

Se matemáticos contemplados pela Medalha Fields demonstram interesses diferentes após a premiação, isso parece revelar um perfil psicológico que não ocorre em outras áreas do saber, como economia. E certamente é algo que deve ser melhor investigado e compreendido. O que há de diferente entre matemáticos? Ou será que o limitante de idade da Medalha Fields exerce uma influência que não atinge cientistas mais experientes? 

O Brasil é um país que já tem um extenso histórico de desprezo por grandes pensadores que aqui nasceram e trabalharam. A conquista da Medalha Fields por um brasileiro, notícia quente ontem e fria hoje, é um sinal de que este perfil social pode mudar. Indivíduos são importantes sim, mas eles nada seriam sem um meio social que os estimule. Que o Brasil aprenda mais com o exemplo do IMPA e que o IMPA aprenda mais com os resultados de Borjas e Doran. Ninguém está imune à crítica.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Psicologia cognitiva ajudando a prever o futuro


Scientia potentia est. Conhecimento é poder. Esta frase, frequentemente atribuída a Francis Bacon, está adquirindo um novo significado a partir deste ano. 

Vivemos em uma época em que muitas informações são coletadas, processadas, usadas e até vendidas. E uma das prioridades do conhecimento científico é justamente a previsão do futuro, para fins de antecipação de fatos e informações. Existem várias teorias científicas que viabilizam isso. Conhecimentos elementares de astronomia permitem antecipar épocas mais adequadas para plantio e colheita. A teoria da gravitação universal de Newton permite prever quando um objeto tocará o chão, após ser abandonado a partir de uma altura conhecida. E cadeias de Markov são empregadas para o desenvolvimento de modelos estatísticos que conseguem antecipar o comportamento de mercados de ações em curtos intervalos de tempo.

Mas agora é a psicologia cognitiva que está desenvolvendo novas técnicas para a previsão do futuro. E, desta vez, o objetivo é antecipar o futuro político de nações e do mundo.

Treze pesquisadores da University of Pennsylvania, Rice University e University of California (Berkeley) publicaram este ano um artigo no prestigiado periódico Psychological Science, no qual é relatado um torneio de previsões geopolíticas durante um período de dois anos. 

Este trabalho já está sendo citado em artigos publicados em Proceedings of the National Academy of Sciences, um dos mais impactantes periódicos científicos multidisciplinares do mundo, e despertou a atenção de unidades da inteligência militar dos Estados Unidos. A US Intelligence Advanced Research Projects Activity (IARPA) decidiu apoiar financeiramente o Projeto Bom Julgamento, com o objetivo de desenvolver novas abordagens para previsões políticas nacionais e internacionais. 

No artigo original acima citado é relatada a existência de pessoas com habilidades especiais de previsão do futuro. No entanto, tais pessoas não podem fazer previsões sozinhas, se o objetivo é torná-las mais precisas. Elas precisam formar equipes devidamente orientadas por profissionais da cognição humana.

Entre as pessoas testadas (recrutadas a partir de sociedades profissionais, centros de pesquisas, associações de ex-alunos e blogs de ciências), foram formados grupos que interagiam entre si e com os pesquisadores envolvidos. Mais de duas mil pessoas (chamadas de previsores) fizeram parte deste torneio e Philip Tetlock (líder do projeto) identificou uma parcela de 2% desta população como super forecasters (super previsores). 

Tetlock e colaboradores orientaram os previsores com técnicas de colaboração em equipe, treinos específicos sobre probabilidades (para fins de correção de tendências humanas naturais) e a efetiva identificação de super previsores para a formação de equipes de elite. O principal resultado foi o seguinte: apesar de previsões serem frequentemente compreendidas como um problema estatístico, elas podem se tornar consideravelmente mais precisas e corretas diante de intervenções comportamentais. 

A equipe liderada por Tetlock também identificou que as pessoas com maior habilidade para previsão do futuro são aquelas que têm desempenho melhor em testes de inteligência e que apresentam a mente mais aberta. Mente aberta, do ponto de vista da psicologia cognitiva, corresponde à habilidade para se lidar com incertezas. Apesar de visão política ajudar, um dos super previsores, por exemplo, é um farmacêutico. Isso ilustra muito bem o fato de que super previsores podem ser encontrados nos mais inesperados lugares.

Diante da realidade política de elevada instabilidade como hoje se encontra o nosso país, vejo como obrigação o comprometimento de nossas autoridades no desenvolvimento de pesquisas aplicadas nesta área. Afinal, se o futuro político de uma nação pode ser cientificamente antecipado, certamente erros podem ser evitados. 

O futuro é incerto sim. Mas já existem evidências significativas (levadas muito a sério) não apenas de tendências para a ocorrência de certos eventos políticos como também da real antecipação dos resultados de tais tendências. Cabe ao Brasil não errar novamente, como já o fez em outras oportunidades, por falta de cultura científica

Os resultados de Tetlock e colaboradores precisam ser conhecidos e aplicados em nossa nação. É o nosso futuro que está em jogo.

Ao leitor interessado, o periódico Psychological Science disponibilizou aqui uma versão não técnica do trabalho de Tetlock.

domingo, 2 de novembro de 2014

Ciência e Ideologia


José Sarney tornou-se o primeiro Presidente da Nova República, em 1985. Diante de uma grave crise econômica em nosso país, no ano seguinte ele lançou por decreto-lei o Plano Cruzado, uma série de medidas econômicas que incluíam congelamento de preços de bens e serviços e congelamento da taxa de câmbio do dólar e da libra. Lembro bem da época. O primeiro Presidente civil, após o fim da ditadura militar, usou sua popularidade para convocar os "fiscais de Sarney", cidadãos comuns que deveriam garantir o congelamento de preços. Mesmo pessoas usualmente sensatas e equilibradas do ponto de vista emocional se transformaram em criaturas animalescas, denunciando (em meio a furiosas ofensas e ameaças) comerciantes que desejavam aumentar preços de mercadorias. Foi o início de uma nova ditadura.

Em 1995 Newton da Costa, Francisco Doria e Marcelo Tsuji publicaram um artigo no qual se demonstrava a existência de jogos não cooperativos (como ocorre em sistemas econômicos) nos quais era impossível calcular o equilíbrio de Nash. Para quem não conhece o tema, basta dizer que o equilíbrio de Nash é uma situação na qual nenhum jogador tem a ganhar mudando a sua estratégia unilateralmente. Por conta deste resultado, fica evidente o inevitável fracasso do Plano Cruzado, que de fato ocorreu, resultando em muitas ações judiciais até hoje em curso. Se o equilíbrio de Nash não pode ser computado, certamente não pode ser imposto.

Alguém poderia argumentar que o resultado de da Costa, Doria e Tsuji só passou a ser conhecido muito tempo depois do decreto do Plano Cruzado. No entanto, a teoria de jogos não cooperativos é conhecida desde 1950. E jamais foi determinado qualquer algoritmo que pudesse estabelecer o equilíbrio de Nash para um jogo não cooperativo qualquer. Ou seja, a decisão do Presidente José Sarney foi puramente ideológica, sem suporte científico. Daí o seu fracasso, com feridas não cicatrizadas que ainda persistem nos dias de hoje.

Este é o preço que se paga diante de posturas irracionais. Pessoas são comumente conhecidas por decisões irracionais tomadas diariamente. No entanto, governos devem ser muito mais cuidadosos, apesar de serem definidos por ações de pessoas. Este é um dos principais motivos do fracasso político de nosso país: a falta de decisões racionais.

Até pouco tempo atrás eu publicava postagens neste blog, mantendo uma ingênua esperança de discussões futuras sobre temas importantes. Após cinco anos de vida deste fórum, cheguei à conclusão de que sou uma pessoa sem visão prática dos fatos da vida. Quando discussões são promovidas, elas ocorrem de forma muito breve, fragmentada e predominantemente no Facebook. E o Facebook é um ambiente que simboliza o esquecimento. Isso porque Facebook é um mar de informações que rapidamente engole o passado, tornando-o obsoleto. Ou seja, Facebook é uma péssima mídia para a promoção de discussões socialmente pertinentes. Mas é uma ótima mídia para atender às necessidades imediatistas de seus usuários, que já somam parcela significativa da humanidade. 

Portanto, o que me resta nesta época próxima do fim das atividades deste blog é apenas o compartilhamento de informações e opiniões com as poucas centenas de pessoas que pensam além dos problemas imediatos. E o tema desta postagem é o conflito entre ideologia e ciência.

Na postagem anterior à esta discuti muito brevemente sobre as relações existentes entre atividade sexual e capacidade cognitiva, citando Satoshi Kanazawa. E no Facebook me deparei com um comentário de Rodrigo Motta, o qual afirma: "Achei interessante a citação ao Satoshi Kanazawa. Ele é bem controverso, inclusive despertou a ira de muitos psicólogos cognitivos quando defendeu que a África é pobre porque negros possuem uma inteligência inferior."

No final do século 19 nascia na Inglaterra a eugenia, uma suposta teoria científica que visava o estudo de agentes que podem melhorar ou piorar qualidades raciais dos pontos de vista físico e mental. Parcialmente sustentados por conceitos da eugenia, muitas decisões políticas desastrosas resultaram em dor, sofrimento e morte. O exemplo mais dramático foi o extermínio de judeus, negros, homossexuais e ciganos durante o regime da Alemanha Nazista. Estranhamente, fala-se hoje muito mais a respeito do extermínio de judeus do que de outros segmentos sociais, como se eles fossem menos importantes. Por quê?

Mas o resultado dessas decisões políticas desastrosas, movidas muito mais por ideologia (e, portanto, por preconceito) do que por ciência, não se limitou ao extermínio de milhões. Atingiu também a própria atividade científica, até os dias de hoje. 

Em blog de Scientific American, John Horgan recentemente levantou a seguinte questão: Pesquisas sobre raça e QI devem ser abandonadas?

Horgan faz um breve levantamento de pesquisas recentes sobre diferenças raciais, cognição humana e economia. Ele abre sua postagem citando o cientista social Jason Richwine, cuja tese de doutorado defendida na Universidade Harvard defende que o QI (quociente de inteligência) médio de imigrantes nos Estados Unidos é substancialmente inferior ao QI da população branca nativa daquele país. Posteriormente Richwine publicou um estudo que indica que a eventual anistia a imigrantes ilegais nos Estados Unidos custaria mais de cinco trilhões de dólares. E ele também afirma que ninguém sabe se hispânicos conseguirão algum dia desenvolver níveis de inteligência comparáveis aos de brancos, mas que a previsão de que novos imigrantes hispânicos terão filhos com QI inferior é difícil de contestar. 

Richard Herrnstein e Charles Murray, também de Harvard (bizarra coincidência!), afirmaram em publicação de 1994 que programas para melhoria de desempenho acadêmico de negros podem ser inúteis, uma vez que esta categoria racial é naturalmente menos inteligente do que brancos. E até mesmo James Watson (ganhador do Prêmio Nobel e ex-professor de Harvard) afirmou que os problemas sociais da África se devem à inferioridade genética de africanos. 

Horgan não cita Kanazawa, o qual é professor da London School of Economics e publicou no British Jounal of Health Psychology um artigo que endossa a visão de James Watson sobre o continente africano. Este trabalho criou considerável polêmica, dividindo opiniões entre pesquisadores de psicologia cognitiva.

John Horgan, autor da postagem publicada em blog de Scientific American (acima citada) sobre correlação entre raças e inteligência, conclui seu texto assumindo a postura do grande linguista Noam Chomsky: "Certamente pessoas são diferentes em suas qualidades biológicas determinadas. O mundo seria horrível demais para ser contemplado se este não fosse o caso. Mas a descoberta da correlação entre algumas dessas qualidades não é de interesse científico e nem socialmente importante, exceto para racistas, sexistas e semelhantes. Aqueles que argumentam existir uma correlação entre raça e QI e aqueles que negam isso estão contribuindo para o racismo e outros preconceitos, porque eles dizem isso assumindo que a resposta a esta questão faz alguma diferença."

A postura de Chomsky é fascinante, sem dúvida. Mas também é cientificamente questionável. Afinal, como saber se existe relevância sem a promoção de pesquisa? E se já foram apontadas possíveis consequências econômicas de diferenças raciais, por que não haveria relevância em tais pesquisas?

Ou seja, até que ponto o mundo hoje vivenciado por todos nós está preparado para a investigação científica? Até que ponto somos capazes de distinguir razão de ideologia? Como diferenciar um racista de um combatente do racismo? Como diferenciar um sexista de uma feminista? Se somos uma espécie que não consegue lidar sequer com sistema econômicos, como lidar com questões fortemente vinculadas a códigos morais? Afinal, moralidade existe há muito mais tempo do que ciência. E o peso da tradição é sempre muito forte.

Quando publiquei a postagem sobre sexualidade e cognição, recebi o seguinte comentário do jornalista José Galisi Filho, o qual editei para fins de reprodução neste blog: 

"Adonai, li seu artigo apenas um vez, mas, como diabético, tenho uma espécie de "licença" e distanciamento naturais, para tentar refletir, como Freud, sobre aquela que é a fratura evolutiva mais brutal: a sexualidade. Você deve se lembrar de uma citação de Settembrini em A Montanha Mágica: 'A vida é uma febre da matéria'. A vida consciente é essa febre auto-reflexiva. Mas acontece que a sexualidade é literalmente uma 'astúcia', um estratagema da explosão pré-cambriana. Ela surgiu lá, é um mistério completo como simplesmente colonizou o planeta em tempo recorde, tudo se sexualizou. Muitos se perguntam se isso aconteceria em outros planetas, mas não é só isso, Adonai Sant'Anna, SEXUALIDADE (explosao cambriana) = VIOLENCIA, predação, são duas faces da mesma moeda, isso não é moral, um médico polêmico afirmou há duas décadas que a gravidez é uma guerra genética entre mãe e filho, como uma partida de xadrez que leva o sistema imunológico do hospedeiro aos limites. É um pensamento profundamente desagradável para os mamíferos. Se você é um cientista, não dá para ser cristão, a brutal violência evolutiva nasce na Terra com a sexualidade. Se você analisar meu blog Urania, perceberá que frequentei uma boa crítica feminista aqui em Hannover, há muitos ensaios sobre Alien e a fantasia castradora masculina de uma 'vagina dentada'. Muito bem. Acho que não dá para responder a nenhuma de suas perguntas sem levar um processo na cabeça. Ninguém vai gostar da resposta. Minha tia é uma bióloga famosa, autora de muitos livros didáticos sobre sexualidade adolescente (O Jô Soares já a entrevistou). Eu simplesmente a odeio por seu otimismo atroz e uma grande parte de meus esforços intelectuais desde a infância foram, ou uma tentativa de negar a versão Cândido/Voltaire dessa biologia, ou mais tarde seguir uma carreira militar (disfarçado de diplomata no CPCD) para acelerar as guerras inevitáveis em curso, pois assim estaria fazendo um favor 'à natureza'. O eixo de minha reflexão é o eros tecnológico e a hibris suicida de nossa espécie em busca do último orgasmo da guerra. Literalmente para Freud isso é a estrutura homossexual da paranoia. Eu sempre falava isso para ela: Tia, a sexualidade cambriana é muito brutal e ela dizia que tudo era maravilhoso, que o mundo era lindo por causa da sexualidade e aí eu percebi que por causa disso eu passei a ter alguns problemas intelectuais tentando ver as coisas como elas são no seu cerne, sem nenhum sistema moral. Para ela, a sexualidade era prova de que a vida tem o surplus de inteligência e seria um imperativo. Escrevi um ensaio acertando as contas com ela. Sobreviver significa, portanto, sobreviver a qualquer custo. Se a função da sexualidade é essa multiplicação e criar um excedente para a aritmética da seleção, uma espécie de 'linha de corte', uma vez cumprido o seu papel, por que continuamos a ter desejo? Por que o desejo sempre continua, não é? Os humanistas chamam isto de 'imaginação poética', a sexualidade criou um excedente. A sua pergunta é: 'Isto é INTELIGENTE?' Só pode ser inteligente se multiplicar, seja pela violência, pela predação indiscriminada. Alguma coisa deve estar errada nesta equação. Agora veja bem, se você quiser pensar em outra coisa que o desvie de pensamentos desejantes, veja. Quem precisa de feminismo?"

Não sei se o leitor está preparado para acompanhar as palavras de José Galisi Filho. Espero que sim. Mas se algum desconforto foi sentido, peço apenas que priorize a seguinte questão, ainda em aberto até os dias de hoje: como diferenciar ideologia de razão?

sábado, 1 de novembro de 2014

Sexo e inteligência


Apresento aqui uma breve discussão sobre algumas descobertas recentes envolvendo as relações entre sexo e inteligência. Meu principal objetivo é alertar para uma certa hesitação da comunidade científica internacional e segmentos sociais associados a ela, quando o assunto é sexo.

Primeira pergunta: atividade sexual saudável interfere em aspectos cognitivos humanos? Resposta: Ninguém sabe.

O que se sabe é que ratos de meia-idade, com vida sexual ativa, tendem a ter um desempenho cognitivo melhor do que ratos de meia-idade privados de atividade sexual. Há evidências convincentes de que sexo interfere de forma positiva no hipocampo, região do cérebro responsável por memória e navegação espacial. E o estudo que aponta para esses resultados foi publicado somente em 2013.

Segunda pergunta: pessoas mais inteligentes têm vida sexual melhor? Resposta: Pouco se sabe a respeito disso.

Em artigo publicado também em 2013 foi relatado que no universo de adultos que se encontram na terceira idade, a vida sexual diminui para a metade quando essas pessoas apresentam um quadro clínico de prejuízo cognitivo moderado (comumente associado à doença de Alzheimer). No entanto, neste estudo os autores demonstram uma preocupação com quantia de relações (por intervalo de tempo), sem qualquer discussão sobre qualidade de vida sexual. E o fato é que existem poucos estudos que focam na questão de satisfação sexual em um contexto mais amplo de saúde pública. Um excelente (e pioneiro) artigo que aborda esta relação entre satisfação sexual e saúde pública foi veiculado somente em 2011. Neste trabalho é promovida uma análise sobre relações entre satisfação sexual e saúde sexual em um universo de estudantes universitários dos Estados Unidos. No entanto, neste estudo nada se discute sobre aspectos cognitivos humanos, algo que certamente interessa aos jovens estudantes avaliados.

Terceira pergunta: Homossexuais são mais inteligentes do que heterossexuais? Resposta: Parece que sim.

Em artigo publicado em 2012, são apresentadas fortes evidências de que indivíduos mais inteligentes tendem a adquirir e expressar mais novidades evolutivas do que indivíduos menos inteligentes. Como o comportamento exclusivamente homossexual era muito raro em tempos ancestrais de nossa espécie, o autor conclui que pessoas mais inteligentes tendem a assumir mais facilmente um comportamento homossexual. Mas o que mais despertou atenção, ao ler o artigo, é um comentário do autor, Satoshi Kanazawa. Afirma ele que seu "interesse científico em comportamento homossexual [...] é estritamente teórico." Bem. Durante cerca de vinte anos trabalhei com física teórica. E, entre as centenas de artigos científicos que li até hoje, jamais vi qualquer comentário do tipo "meu interesse em física quântica é estritamente teórico." Por que fazer uma observação dessa natureza? 

Em suma, apesar do relato nesta postagem ser excessivamente resumido, creio que é seguro afirmar que existe sim uma certa hesitação na comunidade científica para tratar de assuntos que relacionam sexualidade com cognição. Talvez essa postura tenha correlação com atividades pseudocientíficas de passado não muito remoto, as quais associavam diferenças raciais com inteligência. Ou talvez essa hesitação ocorra simplesmente porque sexo ainda é percebido de forma exageradamente preconceituosa. Afinal, jamais podemos ignorar o fato de que o próprio avanço da ciência está fortemente vinculado a contextos sociais sem relação direta com a atividade científica em si. Mas ciência deve ser promovida justamente para avançar sociedades humanas, não apenas para uma melhor compreensão sobre quem somos, mas também para o melhoramento de nossas civilizações.