quarta-feira, 21 de março de 2012

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Uma pesquisadora como Johanna Döbereiner, tcheca naturalizada brasileira, exerceu forte impacto social em nosso país. Ela identificou uma bactéria que fixa o nitrogênio ao solo, dispensando o emprego de adubos químicos em certas culturas. Essa descoberta e sua aplicação transformaram o Brasil no segundo maior produtor mundial de soja, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Na opinião dela, o maior desafio da humanidade é vencer a fome.


O apelo de Döbereiner certamente deve ser ouvido. Mas temos que tomar cuidado com as possíveis impressões que uma afirmação dessas possa causar. Combater a fome é fundamental, sem dúvida. Mas assim como o avanço da matemática brasileira depende da ação de outros setores, como até mesmo o de ensino de línguas estrangeiras modernas, o combate à fome não pode se restringir a pesquisas e ações promovidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, principalmente se não houver articulação com outros setores da sociedade. 


Não devemos confundir metas bem definidas com métodos bem delimitados. A sociedade brasileira é extremamente complexa, operando como uma rede, ainda que governos se esforcem quase em vão para centralizar as decisões estratégicas. Investimentos sérios na educação apresentam reflexos no problema da fome de nosso povo. Tivemos a sorte de contar com a vinda de Döbereiner ao Brasil, pois isso intensificou e melhorou a produção de soja e de outras culturas. Mas nem sempre a sorte pode sorrir para nós. O trabalho dessa brilhante pesquisadora foi conseguido, em parte, por sua formação como engenheira agrônoma na Universidade de Munique, Alemanha. 


Por isso, me ocorre uma dúvida que considero crucial sobre o perfil social de nossa nação. 


No aniversário de quinhentos anos da descoberta (oficial!) do Brasil, a Editora Abril lançou um volume contendo quinhentas biografias de personalidades que tiveram relevância para a construção do país. Na área de ciências surgem quinze nomes, contra cinquenta em literatura e cento e sessenta e dois em uma seção chamada de história e política. Entre os minguados quinze nomes da ciência temos seis médicos, três físicos, um geneticista, uma agrônoma, um bioquímico, uma arqueóloga, um aviador e um lógico. 


É surpreendente que a maioria dos cientistas da lista seja de médicos, levando em conta o péssimo sistema de saúde pública que temos. Certamente precisamos de mais nomes nessa área. 


É curiosa também a ausência de nomes da matemática brasileira. É claro que há um lógico, mas os matemáticos daqui têm certos preconceitos contra lógica. Ainda assim esse lógico está entre os pesquisadores brasileiros com maior volume de citações em periódicos de matemática. Mas nem sempre o reconhecimento internacional se reflete nas mentalidades daqui. Por isso, dentro dos padrões brasileiros, podemos afirmar que não há um único matemático mencionado na publicação desta que é uma das maiores editoras do país. Digo isso, em parte, para acalmar os matemáticos que não estão listados.


A ausência de nomes da matemática brasileira nessa lista não parece remeter a incompetência na área. Afinal, matemáticos como Leopoldo Nachbin, Maurício Peixoto e Jacob Palis deixaram para trás obras marcantes com grande repercussão internacional. Não foi coincidência a indicação de Jacob Palis para a Presidência da União Internacional de Matemática. Por que então eles não figuram nessa lista? Será que essa ausência se deve a um baixo impacto da matemática na sociedade brasileira? Ou será que isso espelha a pouca importância que nossa sociedade confere à matemática? Essas são questões que merecem uma boa análise para serem respondidas. 


Mas, de qualquer modo, há uma contradição. O Brasil conta com grandes matemáticos no passado e no presente e nossa sociedade simplesmente não sabe disso! Qual é a correlação entre tamanha ignorância e o fato de que temos uma péssima educação matemática? Por que até mesmo professores de matemática desconhecem os nomes de nossos mais ilustres matemáticos? 


Conheci muitos docentes de matemática de ensino fundamental e médio. Raros foram os casos daqueles que já tinham ouvido falar de algum dos nomes citados. Até mesmo entre professores de ensino superior esse incômodo fenômeno acontece. Quando pergunto sobre matemáticos brasileiros, ainda ouço o nome de Oswald de Souza. Essa figura televisiva jamais fez qualquer contribuição relevante em matemática. Como diferenciar comédia de tragédia?


Mesmo Elon Lages Lima, apesar de não ser tão conhecido por contribuições relevantes na pesquisa matemática (mesmo tendo feito algumas), foi uma figura de grande importância na formação de milhares de matemáticos e professores. Seus livros usados em inúmeros cursos de graduação e suas contribuições para a formação e atualização de professores de matemática certamente tiveram um impacto social de peso. Será que educadores deste porte não poderiam estar presentes na histórica lista da Editora Abril? 


Compreendo que a seleção de apenas quinhentos nomes é um limitante considerável. Mas será mesmo que o apresentador de televisão Chacrinha teve uma importância social mais significativa em nosso país do que Elon Lages Lima, Maurício Peixoto, Leopoldo Nachbin ou Jacob Palis? Podemos dizer o mesmo dos jogadores de futebol Zico e Garrincha, também presentes nessa lista?


Que tipo de país é este? Podemos julgar a publicação da Editora Abril por uma falha cultural? Ou será essa lista de quinhentos nomes um inevitável reflexo sobre o quanto valorizamos a ciência e a matemática?


Se uma lista de personalidades famosas de Cuba não incluísse um único nome na área de filosofia, eu compreenderia tal atitude sem problema. Não acho que Cuba tenha produzido algum filósofo relevante. Mas o Brasil produziu ótimos matemáticos! Por que não estão lá?

16 comentários:

  1. Por isso considero seu blog de relevância! Porque nos mostra nomes, fatos, ideias, sugestões de melhoria em nosso país, nossa educação, nossa visão de brasileiros e principalmente a visão que temos de nós mesmos!
    Temos que mudar algo. Fazer algo para melhorar o mundo em que vivemos. Utilizar os conhecimentos adquiridos para os outros. E não para nos "gabarmos" (de nariz empinado): "sou mestre, sou doutor, sou pós-doc". E daí? pergunto eu, se nada fez pela humanidade?? Parabéns Adonai. Admiro você (sabe disso).

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  2. Contribuições de pessoas para o desenvolvimento da humanidade. São pouquíssimas e nem conhecidas, mas para o desenvolvimento do sistema capitalistas todas essas que a editora abril homenageou contribuíram bastante. Qd falo no sistema capitalista estou me referindo desde a sua ideologia que abrange o individualismo com sua concepção (neo) liberal até a exploração do homem pelo homem que traz consequências gravíssimas para o conjunto da sociedade. O problema está na educação, que n é prioridade, e no Brasil, quando assume um contexto bastante específico, a prioridade é zero, pois pra que um sistema educacional que faça com que as pessoas utilizem realmente o cérebro? Q indaguem sobre suas condições, que permita refletir sobre questões desde as mais "banais" até as mais complexas? O sistema político não quer q isso aconteça, o capitalismo muito menos pq o sistema que nós vivemos tem como objetivo o lucro pelo lucro, não há como se pensar em ter uma humanidade. Viramos coisas, nossa força de trabalho virou mercadoria e por consequencia, nós tb somos mercadorias, e assim, pergunto: Como falar em humanidade se estamos cada vez amis distantes daquilo que somos?

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  3. Pode ser que você tenha razão, Anônimo. Mas ainda aposto em outro fator responsável: ingenuidade. Países considerados capitalistas conseguem lembrar facilmente de seus grandes nomes da ciência. O Brasil é que parece estar adormecido em seu berço esplêndido.

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  4. Quantas pessoas querem/quiseram melhorar suas práticas no que diz respeito ao ensino da matemática? Quantas pessoas gastam/gastaram uma hora por semana vendo um vídeo do PAPMEM? Creio que muito poucas (tem cursos de licenciatura por aí que estão infestados de pessoas que nem sabem que é Elon).

    Quantas pessoas querem/quiseram ser estrelas do futebol ou da TV? Quantas pessoas gastam/gastavam tempo assistindo novela ou futebol? Acho que muitas (basta olhar para os picos de audiência da televisão).

    Na minha opinião, estes e outros fatos sgnificam que a influência de gente como o Elon é mais louvável do que a influência do que a influência de gente como o Chacrinha mas, sem dúvidas, não é maior.

    Portanto, eu penso que a lista da editora é um reflexo do que pensa a maior parte da sociedade. A maior parte da sociedade é ignorante sobre ciência e, em especial, sobre matemática. Daí a editora lança uma lista que ignora a ciência e a matemática. (Nesta parte ignorante da sociedade estão incluídos muitos professores).

    Não sei que critérios a editora usou, mas creio que ela buscou agradar a maioria e, por certo, pouquíssimos leitores iriam sentir falta de Peixoto, Nachbin e Palis pois nem sabem que eles existem. Já Chacrinha, Garrincha e Zico estão incrustados na mente do povo.

    AAnooniimoo

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  5. AAnooniimoo

    Entendo seu argumento. Mas pense no público alvo do livro. Fãs de Chacrinha, Garrincha e Xuxa (que também está na lista) costumam ler livros como esse? Será que até mesmo o público que procura por literatura histórica é mais fortemente influenciado pela Xuxa?

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  6. Caro Adonai,
    isso me parece com o que Hegel chamava de volksgeist, "espírito de um povo". Este fortemente relacionado a constituição histórica e cultural. Nestas condições, as instituições sociais, segundo alguns teóricos da filosofia política, são a expressão desse "espírito". Fala-se, então, por exemplo, do "espírito alemão", "europeu", ou "americano". O Estado alemão, a matemática alemã, a ciência desse povo, p.ex., são a expressão deste espírito. O que expressa então o "espírito tupiniquim"? Um "estado molusco", i.e., sem constituição óssea, o carnaval, que é muito mais uma expressão alegórica. Nossa educação começou com o espírito da contra-reforma e, portanto, fortemente contra a ciência moderna, e mesmo contra a matemática moderna. Não é atoa que a ciência e a matemática não fazem parte de nossa tradição cultura. Newton da Costa, entre outros, são uma rara exceção, na verdade uma distorção no quadro de nossa história. O que é a expressão genuína de nosso espírito são os chacrinhas, xuxas, pelés e líderes políticos oportunistas. É lamentável mesmo.
    Um abraço,
    Gilson Maicá

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    1. Por isso que eu gosto de filósofos sérios! Excelente avaliação, Gilson. Desanimadora a extremos, mas excelente. Minha esperança, porém, é que se forme aos poucos uma massa crítica articulada que mude esse quadro. Sabe dizer se há exemplo histórico de que isso tenha acontecido?

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    2. Adonai,
      Você está me perguntando se já tivemos vida inteligente por aqui? Bem, lembro-me quando tomei o livro do Newton, "Ensaio sobre os Fundamentos da Lógica" pela primeira vez nas mãos; fique apaixonado tanto pelo modo direto e pela simplicidade da abordagem, bem como pela profundidade dos temas lá tratados. Depois, descobri que ele não estava sozinho em sua empreitada científica e filosófica. Segundo o Béziau, o Prof. Newton havia congregado em torno de si uma horda de pesquisadores ambiciosos e, por que não dizer, talentosos. Este me parece um exemplo claro de como a ciência pode prosperar, mesmo em "lugares inóspitos". O problema me parece o seguinte: somos beduínos num imenso deserto, com alguns poucos oásis. Se não se estabelecem as condições para alavancar a ciência em nosso País, dificilmente estes oásis irão prosperar.
      Um abraço.
      Gilson

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  7. Há um outro fenômeno interessante que ocorre entre os alunos de graduação em matemática. Muitos dos grandes matemáticos brasileiros são professores em universidades brasileiras, e ministram cursos para graduação, mas os alunos não conhecem seus professores. Tive o privilégio de ter aulas com excelentes matemáticos, mas raramente meus colegas conheciam o trabalho de pesquisa desses professores.

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    1. Aline

      Seu comentário me faz recordar de um episódio que ocorreu comigo. Certa vez uma colega minha ficou espantada quando soube que eu havia divulgado o livro dela sobre fractais entre alunos meus. Isso, definitivamente, não é usual. Mesmo colegas que trabalham em um mesmo departamento, na mesma instituição, desconhecem os trabalhos uns dos outros.

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  8. Neste texto foram citados alguns matemáticos brasileiros: Elon Lages Lima, Maurício Peixoto, Leopoldo Nachbin e Jacob Palis. No seu blog sempre é ressaltado não só a raridade de matemáticos brasileiros de qualidade como também o fato da população não conhecer os que existem.

    Será que é possível vc citar a principal área de atuação e um trabalho de importância internacional de cada um destes 4 matemáticos citados? Creio que não é possível resumir as contribuições deles em poucas palavras, mas é só para nós, leigos, termos uma noção melhor.

    A propósito, gostaria de deixar uma pergunta que talvez você possa discutir em outro texto: matemática é ciência? matemático pode ser chamado de cientista?

    AAnooniimoo

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    1. AAnooniimoo

      Sua sugestão é ótima e fácil de ser realizada. Já estou colhendo informações há algum tempo, para escrever sobre estes e outros matemáticos brasileiros importantes.

      Com relação à sua pergunta, gosto de considerar matemática como ciência, até porque no mundo inteiro isso é feito. Mas percebo que sua indagação é mais sutil, exigindo elaborada justificativa filosófica. Não sei se poderei responder, neste sentido. Mas pensarei sobre o tema.

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  9. Caros!

    Luisandro Mendes de Souza encontrou dificuldade para publicar seu comentário aqui. Ele enviou e-mail para mim e agora estou transferindo o texto dele (com a devida permissão) para cá.
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    Olá, Adonai, como vai?

    Estou tomando a liberdade de te escrever porque aparentemente o sistema de comentários do seu blogue não aceitou o meu comentário. E o assunto do seu texto também me angustia muito em relação ao que fazemos em termos de estudos linguísticos no Brasil.
    Cordialmente, Luisandro

    É um tipo de frustração que eu compartilho com você. Não conheço o livro, mas provavelmente o nome de Joaquim Mattoso Camara Jr não estara lá. Ele foi o responsável por introduzir o primeiro curso de linguística no Brasil e introduzir os brasileiros na ciência que nascia no início do século XX (bem como fez descrições brilhantes do nosso sistema vocálico, e da flexão nominal e verbal). Nós, linguistas, padecemos desse mesmo mal, a distância
    que separa o que fazemos na academia e a sociedade ainda é muito grande.

    Tampouco conseguimos passar para nossos alunos de graduação a importância da pesquisa na área. Alunos na UFSC reclamam que a formação deles é muito voltada para a pesquisa, como se não fosse importante saber como se faz ciência da linguagem ou saber minimamente como funciona a língua portuguesa de um ponto de vista científico. Meu professor de violão, hoje mesmo, me surpreendeu ao dizer que ele acredita que não se faz pesquisa científica no
    Brasil, que nada de novo se produz e que tudo é cópia. Infelizmente não consegui convencê-lo do contrário, porque na minha área é difícil mostrar pras pessoas que é importante o estudo de um fonema, de uma palavra, de um prefixo, mesmo que seja apenas para sabermos como essas coisas funcionam no conjunto do sistema gramatical do português. Feynman ficaria assustado com
    um relato desses. A culpa é da sociedade? Se sim, a culpa é nossa, porque fazemos parte da sociedade e nada fazemos para diminuir essa distância entre o leigo e academia. A escola deveria fazer essa ponte, bem como as revistas de divulgação científica. Quero acreditar que isso vai mudar, pelo menos já temos revistas de divulgação científica no Brasil, como a Scientific American, o que já é alguma coisa, ou mesmo a Língua Portuguesa, que sempre traz contribuições de linguistas, não apenas de gramáticos com
    as suas regrinhas ranzinzas de como escrever corretamente.

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    1. Luisandro

      O título do livro é Quem é Quem na História do Brasil. A diretora de redação é Márcia Tonello (mtonello@abril.com.br). E, de fato, Joaquim Mattoso Camara Jr não é citado.

      Com relação à sua visão, concordo parcialmente. Existe sim a responsabilidade da comunidade científica brasileira sobre a ignorância que a população sofre. No entanto, há também a responsabilidade da unidade familiar. Adaptando uma frase de um colega, "brasileiro é uma criatura que acha que aparelhos de DVD nascem em árvores plantadas no Paraguai."

      O problema de revistas de divulgação sérias como aquelas que você cita, é que a tiragem delas é muito menor do que a de revistas como Superinteressante ou Veja, as quais são verdadeiros focos de ignorância.

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  10. Neste blog é, às vezes, ressaltada (ou sugerida) a ignorância das pessoas em relação aos cientistas e matemáticos brasileiros. Isto acontece, particularmente, neste post - por exemplo no fragmento "Por que até mesmo professores de matemática desconhecem os nomes de nossos mais ilustres matemáticos?". No post "Matemática como Arte" também ocorre algo parecido.

    Portanto, gostaria de pedir sugestões de como amenizar esta ignorância, pois pessoas como eu (que não tiveram uma formação científica adequada) tem dificuldade até mesmo de selecionar algo para ser lido. Então, se possível, recomende uma lista de revistas e/ou sites que valem a pena ser lidos quando a intenção é ficar "antenado" com relação ao que acontece na ciência e na matemática não apenas no Brasil como também no mundo. Se possível, pelo menos uma em língua portuguesa. Além disso, seria interessante uma lista em ordem de importância para servir de critério de escolha (pois poderá ser que a pessoa não tenha oportunidade de aderir várias assinaturas).

    [quando digo "lista" não me refiro a algo extenso e detalhado. Pode ser duas ou três dicas de algo relevante].

    AAnooniimoo

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    1. AAnooniimoo

      Algumas sugestões já foram colocadas na página de links recomendáveis. Mas percebo que não atende exatamente o que você pede. Farei o seguinte: criarei uma página nova com links para biografias de alguns dos mais importantes cientistas que já tivemos. Farei isso em breve. Ótima sugestão.

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