segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Por que ensinar matemática?


Poucas coisas são mais tristes na educação do que um professor de matemática que não consegue justificar sua atividade profissional sem a eterna repetição de jargões cujos significados se perderam no tempo. Um professor de matemática pode justificar seu interesse nessa área do conhecimento por uma questão de gosto pessoal. Mas como gosto não se discute, esse tipo de atitude dificilmente contagiará qualquer massa crítica de alunos em uma sala de aula.

A velha história de que matemática ensina a pensar é algo subjetivo, vago e até ofensivo. É como se disséssemos aos alunos que eles não sabem pensar e que, por isso, devem assimilar os padrões ditados pelo mestre, sob pena de reprovação institucional. Ou seja, o embate entre aluno e instituição de ensino tem as proporções de um épico. E poucos percebem isso.

Se a atitude de pensar é individual, de que forma uma ciência tão repleta de padrões (pelo menos aos olhos dos discentes) pode ajudar nesta arte? Devemos nos submeter à retórica dos livros e apostilas para sermos livres pensadores?

Um dos erros mais graves no ensino da matemática em nosso país reside na impensada prática da repetição de autores de livros e apostilas e profissionais do ensino, os quais se esforçam a extremos para divulgar uma imagem de que a matemática é indiscutível, perfeita e acabada. Afinal, é uma ciência exata. Isso naturalmente intimida aqueles que não querem abrir mão de sua individualidade. Uma disciplina tão rígida pode engessar a mente, como realmente o faz na cabeça de muitos docentes.

Tomemos o exemplo da operação de divisão. Quantos são aqueles que afirmam que não faz sentido dividir por zero? Afirmar isso a um jovem é uma forma de contribuir para o engessamento de sua mente. E são inúmeros os autores e professores que repetem essa afirmação sem jamais refletirem sobre o que de fato estão dizendo. Matemática não se faz por princípios imutáveis. Do ponto de vista lógico, nada impede de se definir divisão por zero. Se usualmente não se divide números naturais, inteiros ou reais por zero, é por mera convenção. Os jovens deveriam ser instigados e pensar em matemáticas alternativas, como de fato existem, espalhadas pelo mundo que transcende o umbigo de nossos mestres. Ou seja, por que não questionar como seria uma matemática que permitisse a divisão por zero? Como ficaria o estudo de operações entre matrizes? E os sistemas lineares?

Matemática trata da definição de escopos, da qualificação de discurso. Quando se diz que não é possível subtrair números naturais, entenda-se com isso que a operação de subtração (como usualmente se faz entre números inteiros) não pode ser definida entre os números naturais. Mas nada nos impede de definirmos outro tipo de subtração entre números naturais.

Neste sentido, matemática não é a ciência do que faz sentido. Matemática é o exercício da qualificação de discurso. No âmbito de um dado sistema matemático, certas operações (por exemplo) podem ser executadas e outras não. Quando isso é aplicado nas ciências reais (física, química, biologia, linguística, economia, medicina, direito etc) conseguimos estabelecer mais facilmente o caráter epistemológico de tais ciências. A epistemologia se refere aos limites do conhecimento científico. Como na matemática se definem linguagens formais nas quais essa qualificação é muito precisa, o emprego de tais linguagens é um agente extremamente facilitador.

Não é possível descrever em uma linguagem natural como o português o funcionamento de um automóvel ou as dinâmicas de corpos celestes. Quando a matemática entre em cena, ela oferece uma linguagem que qualifica e que viabiliza aplicações tecnológicas formidáveis.

Ou seja, a matemática pode ser motivada por seu caráter aplicativo e filosófico. As aplicações são mais do que conhecidas. Cercam-nos a todo instante. Já a contraparte filosófica reside no poder de qualificação de discurso das linguagens matemáticas. Como filosofia é o exercício do senso crítico, matemática também o é. Consequentemente, matemática é motivo de discussão e não ferramenta de doutrinação.

sábado, 7 de novembro de 2009

Trigonometria e Ensino Médio


Muitos livros e apostilas de matemática do ensino médio definem seno e co-seno a partir de uma razão entre comprimentos de lados de um triângulo retângulo. Mesmo definições que fazem uso do chamado círculo trigonométrico apelam para essa noção, considerando somente triângulos retângulos com hipotenusas unitárias. Costuma-se dizer que o seno de um ângulo agudo de um triângulo retângulo é, por "definição", a razão entre a medida do cateto oposto ao ângulo em questão e a medida da hipotenusa do triângulo retângulo dado. Essa suposta definição é empregada para calcular, sem dificuldades, o seno de certos ângulos chamados de notáveis, como 30 graus, 45 graus e 60 graus. Tais ângulos notáveis podem ser facilmente obtidos a partir de polígonos regulares, como triângulos equiláteros e quadrados. É realmente curioso como alunos e professores se contentam com cálculos simples, como o seno de ângulos notáveis ou de ângulos que podem ser obtidos via operações elementares entre notáveis, como 15 graus, que é a diferença entre 45 graus e 30 graus.

Mas calcular o seno de ângulos notáveis não representa exatamente um desafio intelectual e está longe de passar pelo escrutínio de um teste crítico sobre o conceito. Problema pode ocorrer se um aluno com senso crítico perguntar ao professor, por exemplo, como calcular o seno de √2 graus, entre outros casos não-notáveis, mas que certamente podem surgir em aplicações interessantes em termos até mesmo de necessidades do dia-a-dia.

Ainda que, para fins de simplificação, seja considerado que a hipotenusa mede 1 (uma unidade de comprimento), fica inviável determinar o seno de √2 graus sem recorrer a uma calculadora – que fornece apenas valor aproximado por causa de suas limitações em representação decimal finitária – ou a uma tabela de senos (de origem misteriosa, do ponto de vista do aluno).

Qual é o procedimento que a calculadora científica utiliza para calcular o valor do seno de um ângulo qualquer? A calculadora desenha um triângulo retângulo com ângulo igual a √2 graus e mede o valor do cateto oposto ao ângulo em questão em um hipotético triângulo retângulo com hipotenusa de comprimento unitário? A resposta é obviamente negativa. Calculadoras eletrônicas não fazem desenhos em seus circuitos internos. E quanto à tabela de senos? De onde vem? Foi trazida do alto de uma montanha por algum excêntrico e fanático pitagórico? Se for este o caso, prefiro não saber. Não confio no conhecimento conseguido por revelação.

Para se calcular o seno de √2 graus, ainda que a hipotenusa tenha medida unitária, precisamos conhecer a medida do cateto oposto. Mas para conhecer a medida do cateto oposto ao ângulo de √2 graus, é preciso saber o valor do seno de √2 graus! Isso remete a uma violação da condição de eliminabilidade em definições. Afinal, sob a ótica das teorias de definição hoje conhecidas, toda definição explícita (aquelas da forma "definiendum é, por definição, o definiens") deve ser eliminável. Ou seja, o definiendum deve ser substituível pelo definiens. E não há número ou expressão (definiens) que possa ser usada para substituir por seno de √2 graus (definiendum).

O fato é que uma "definição" de seno que dependa do valor de um cateto de um triângulo retângulo, depende de um conhecimento prévio da medida de tal cateto. Porém, para conhecer a medida do cateto oposto ao ângulo, é necessário conhecer o seno dele, tendo em vista que a relação entre ângulo e cateto ocorre por meio do seno. Há aqui uma circularidade. A suposta definição de seno em termos de cateto oposto e hipotenusa não é de fato uma definição. É como se o seno, supostamente definido como razão entre cateto oposto e hipotenusa, fosse um conceito não-eliminável, pois o seno depende do cateto oposto, o qual depende do seno. Não há de fato uma relação de equivalência entre um definiendum e um definiens que obedeça ao critério de eliminabilidade.

A propriedade usual que estabelece a relação entre seno de um ângulo e razão entre medidas de lados de um triângulo retângulo está correta. Mas não pode ser usada para fins de efetiva definição de seno.

Uma definição usual para seno é a seguinte:

Seno é uma função real y com domínio no conjunto dos números reais, tal que y’’ + y = 0 e tal que y(0) = 0 e y’(0) = 1, sendo que y’ e y’’ são, respectivamente, a derivada e a derivada segunda de y, e y(0) e y’(0) são as imagens de 0 (zero) pelas funções y e y’.

Ou seja, a função seno é uma solução de uma equação diferencial linear homogênea de segunda ordem com certas condições de contorno que, se modificadas, podem permitir a definição de outras funções circulares como co-seno.

É claro que tal definição se refere somente a ângulos medidos em radianos. Para obter uma definição de seno para ângulos em graus (ou grados), é necessária uma conversão que deve modificar os coeficientes da equação diferencial dada acima.

A solução para essa equação diferencial, com as condições de contorno dadas (y(0) = 0 e y’(0) = 1), pode ser representada por meio de uma série de potências conhecida como série de Maclaurin. Um bom livro de cálculo diferencial e integral oferece todos os pré-requisitos para compreender detalhadamente a definição de seno apresentada. Por exemplo, a série de Maclaurin correspondente à função seno é:

sen x = y(x) = x – x^{3}/3! + x^{5}/5! – x^{7}/7! +... ,

sendo que x é um número real, x^{n} é x elevado a n, / denota divisão entre números reais e n! é o fatorial de n.

Essa série é convergente para qualquer número real x, ou seja, existe um número real S que é a "soma das infinitas parcelas com sinais alternados" da série, independentemente do valor escolhido para x.

O leitor deve perceber também que tal série é definida por parcelas que têm sinais trocados de maneira alternada, com o expoente e o denominador sendo definidos a partir de números naturais ímpares em ordem crescente.

Na prática, calculadoras eletrônicas e computadores são programados para fazerem um truncamento na série, somando apenas as M primeiras parcelas, a fim de se obter um valor aproximado para seno de x, de acordo com a precisão desejada e viável para a calculadora. Em outras palavras, o número de parcelas M utilizadas nessa soma finita depende do grau de precisão desejado e da capacidade de processamento da máquina. De qualquer modo, essa definição é eliminável, no sentido de que dado qualquer real x, sempre é possível substituir sen x por um número real, que é a soma da série de Mclaurin para esse valor de x.

No entanto, a definição de seno e co-seno como solução de uma equação diferencial acaba gerando um sério problema do ponto de vista didático. Afinal, equações diferenciais não constituem um tema do ensino médio, apesar de trigonometria o ser. Então, de que forma devemos ensinar trigonometria no ensino médio, sem cometer erros conceituais e ainda tornar o assunto acessível ao aluno que domina somente os pré-requisitos normalmente disponíveis nesse nível escolar?

Algumas possíveis propostas são as seguintes:

1) Proceder ainda com a propriedade de que seno é uma razão entre cateto oposto e hipotenusa e que co-seno é uma razão entre cateto adjacente e hipotenusa, mas sem afirmar ou insinuar que essas propriedades efetivamente definem seno e co-seno.

2) Instigar o senso crítico do aluno para que ele perceba que a propriedade de razão entre lados de um triângulo retângulo não permite determinar o seno ou o co-seno de ângulos que não são notáveis ou deles derivados por certas operações elementares.

3) Tornar claro ao aluno que existem definições precisas para seno e co-seno e que estas permitem o cálculo do seno e do co-seno de qualquer número real e com a precisão desejada, sem que seja necessário apelar a "místicos oráculos" como calculadoras, computadores ou tabelas.

4) Tornar claro que um estudo mais aprofundado sobre trigonometria exige o domínio de uma matemática mais avançada, que se aprende somente em cursos superiores nos quais essa matéria está significativamente presente. É claro que a matéria em questão é o cálculo diferencial e integral, o qual pode demandar uma fundamentação através da análise matemática, da teoria de conjuntos e, principalmente, da lógica.

O professor deve saber que calculadoras científicas processam seno e co-seno através do truncamento das séries de potência, que são soluções das equações diferenciais que definem seno e co-seno. Como uma série de potências é definida a partir das chamadas quatro operações usuais entre números reais (adição, multiplicação, subtração e divisão), a imagem de uma função trigonométrica qualquer é obtida a partir de um número finito de operações elementares. Ou seja, trigonometria, para fins práticos, é tratada algebricamente e não por meios geométricos. Se há geometria, ela pode ser usada para uma possível interpretação dos resultados algébricos da trigonometria.