quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Probabilidades no Ensino Médio


Noções sobre probabilidades são lecionadas no ensino médio de nosso país. Portanto, esta é outra fonte de frustrações para os jovens. E algumas das principais tolices que se ensinam nessa área é resultante de uma confusão entre formalismo matemático e mundo real.

Se for impossível a ocorrência de um evento, é razoável afirmar que sua probabilidade é 0 (zero por cento). Se for certa a ocorrência de um evento, é igualmente racional dizer que sua probabilidade é 1 (cem por cento). Mas podemos afirmar que probabilidade nula se traduz como a impossibilidade de ocorrência de um evento? Analogamente, podemos afirmar que probabilidade 1 (100%) corresponde à certeza de que o evento correspondente irá acontecer? Além disso, qual é a garantia que podemos dar em relação à certeza de ocorrência ou não ocorrência de um evento?

Probabilidade é um conceito de uma teoria matemática. E quando se fala na certeza de ocorrência ou não ocorrência de um evento, está sendo feita uma interpretação de tal teoria no âmbito do mundo real. As confusões que são feitas entre matemática e mundo real são assustadoras e têm gerado inúmeros preconceitos e erros na literatura e em sala de aula.

Imagine, por exemplo, um alvo circular de raio não nulo sobre o qual são arremessados dardos ideais; ou seja, dardos que marcam pontos com área nula sobre o alvo. Imagine também que a distribuição de probabilidades sobre o alvo seja uniforme, de tal modo que a probabilidade de se acertar uma região do alvo é calculada apenas pela razão entre a área dessa região e a área do alvo. Isso significa que para acertar um ponto qualquer do próprio alvo, devemos dividir a área deste pelo mesmo valor, o que resulta em 1. Ou seja, a probabilidade de se acertar um ponto qualquer do alvo é de 100%. Se dividirmos o alvo em duas metades, a probabilidade de se acertar um ponto qualquer de uma das metades é 0,5 (50%). Isso porque qualquer metade do alvo tem área correspondente à metade da área total do alvo.

No entanto, qual é a probabilidade de se acertar um ponto específico do alvo? Sabendo que um ponto escolhido tem área nula, a probabilidade é calculada como sendo zero dividido pela área do alvo, o que resulta em zero (0%). Ao se arremessar um desses dardos imaginários, ele eventualmente acertará algum ponto. E este ponto é tal que a probabilidade de ser acertado é nula. Ou seja, os dardos acertarão pontos cujas probabilidades de serem acertados é zero. Portanto, probabilidade zero não pode ser traduzida como a impossibilidade de ocorrência de um evento, pelo menos não no plano intuitivo do que entendemos como ocorrência de um evento.

É claro que estamos falando de dardos ideais, que marcam pontos e que, a princípio, não existem no mundo real. Afinal, dardos reais não marcam pontos, mas pequenos orifícios com área não nula, ainda que pequena (em comparação com a área do alvo).

Porém, mesmo no mundo real há demonstrações de que probabilidade nula não implica em impossibilidade de ocorrência de um evento.

Considere, para fins de ilustração, um simples jogo de cara e coroa, com uma moeda. Se assumirmos que a moeda arremessada é não-viciada, é senso comum considerar que a probabilidade de se obter cara em uma jogada é 0,5 (50%). Em contrapartida, a probabilidade de se obter coroa também é 0,5, pois cara e coroa são fenômenos complementares. A probabilidade de se obter cara ou coroa é de 0,5 + 0,5 = 1 (100%). Portanto, qualquer outra ocorrência tem probabilidade nula.

Mas há casos, muito raros, em que a jogada da moeda não resulta em cara ou coroa. Isso porque ela cai “em pé”, ficando imóvel em uma posição vertical relativamente ao solo. Temos assim uma ocorrência cuja probabilidade era nula. Ainda que alguém queira fazer um ajuste nessa experiência, jogando muitas vezes a mesma moeda e obtendo o número de ocorrências de cara, coroa e resultados atípicos, como o caso em que a moeda cai “em pé”, esse alguém estará dando uma interpretação frequencial ao jogo de cara e coroa. Vale lembrar que a interpretação frequencial, neste caso, é aquela que considera que uma probabilidade é calculada a partir de muitas experiências realizadas (no mundo real).

Toda função de probabilidade tem como domínio uma sigma álgebra que pode ser intuitivamente interpretada como um conjunto de eventos reais. Um dos problemas da interpretação física de probabilidade é a determinação dessa álgebra de eventos possíveis. Por exemplo, no jogo de cara e coroa, devemos levar em conta o evento atípico “ficar em pé”, no universo de possíveis resultados? Outra dificuldade é a definição da função de probabilidade em si. Ou seja, como garantir que uma moeda não é realmente viciada?

O quê a teoria de probabilidades determina de maneira inequívoca é o comportamento matemático geral da função de probabilidades, e não propriamente a sua forma específica e explicitamente dada, por exemplo, por algum tipo de algoritmo. Por exemplo, nenhuma probabilidade pode ser menor do que zero ou maior do que um. Essa propriedade é muito geral e permite a existência de uma vasta gama de funções que a satisfazem. As outras propriedades usualmente consideradas também não permitem a definição de uma função única de probabilidades, mesmo que consideremos o mesmo universo de eventos.

A atribuição de probabilidades em uma álgebra de eventos reais, do mundo físico, pode ser uma tarefa muito ingrata. Afinal, ao afirmarmos que a probabilidade de se obter cara é 0,5, o quê queremos dizer com isso? Queremos dizer que após dez milhões de jogadas, exatamente cinco milhões resultarão em cara? Mas dez milhões é um número que está longe da quantia total de vezes que podemos arremessar uma moeda, assumindo ainda que tal moeda não ficará desgastada (e, portanto, viciada) durante os arremessos e quedas. Será que uma atribuição de 0,5 para a probabilidade de se obter cara não reflete uma crença de que a moeda não é viciada? Nesse caso, a situação é mais crítica, pois crenças freqüentemente se mostram errôneas. Será ainda que a probabilidade de 0,5 para se obter cara não é uma propensão natural da moeda? Pode até ser, mas quem julga tal propensão? Um ser humano? Deus? Humanos costumam cometer erros, mesmo sem perceberem. E Deus, pelo menos na literatura científica, não tem sido muito citado como confiável fonte.

Como a interpretação física de valores de probabilidades está sujeita a erros de mensuração e erros de julgamento, não há como afirmar que mesmo uma probabilidade nula no mundo físico possa ser inquestionavelmente interpretada como a impossibilidade de ocorrência de um evento real.

Análise análoga vale para o caso de probabilidade um (100%). Isso porque se a probabilidade de ocorrência de um evento é zero, a probabilidade de não ocorrência do mesmo evento é um.
Teoria de probabilidades é um tema altamente não-trivial e demanda especial cuidado. Por exemplo, mencionamos acima algo sobre moedas não-viciadas. Mas o que é uma moeda não-viciada? É aquela na qual a ocorrência de caras, após arremessos, é aproximadamente igual à ocorrência de coroas no mesmo universo de arremessos? A resposta é não. Considere, por exemplo, uma seqüência de arremessos de uma moeda na qual temos o seguinte resultado:

Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa.

Temos, neste exemplo, dezesseis caras contra dezesseis coroas. No entanto, esta moeda desperta suspeitas; pois em trinta e dois arremessos, ela tem alternado com precisão seus resultados. Em todas as jogadas ímpares (primeira, terceira, quinta etc.) temos obtido cara, e em todas as jogadas pares (segunda, quarta, sexta etc.) temos obtido coroa. Será que essa moeda é realmente não-viciada? Esse jogo é justo?

O estudo de probabilidades pode ter um importante papel na formação de cidadãos. Se as pessoas conhecessem noções básicas dessa área do conhecimento, não cometeriam erros grosseiros como apostar dinheiro em loterias ou acreditar em depoimentos extraordinários de contato com fantasmas e seres extraterrestres, ainda que vindos de pessoas confiáveis. Este último problema pode ser estudado do ponto de vista de probabilidades condicionais. Para detalhes sobre a importância de probabilidades condicionais no cotidiano e em ciência analisaremos em breve uma situação específica.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Por que ensinar matemática?


Poucas coisas são mais tristes na educação do que um professor de matemática que não consegue justificar sua atividade profissional sem a eterna repetição de jargões cujos significados se perderam no tempo. Um professor de matemática pode justificar seu interesse nessa área do conhecimento por uma questão de gosto pessoal. Mas como gosto não se discute, esse tipo de atitude dificilmente contagiará qualquer massa crítica de alunos em uma sala de aula.

A velha história de que matemática ensina a pensar é algo subjetivo, vago e até ofensivo. É como se disséssemos aos alunos que eles não sabem pensar e que, por isso, devem assimilar os padrões ditados pelo mestre, sob pena de reprovação institucional. Ou seja, o embate entre aluno e instituição de ensino tem as proporções de um épico. E poucos percebem isso.

Se a atitude de pensar é individual, de que forma uma ciência tão repleta de padrões (pelo menos aos olhos dos discentes) pode ajudar nesta arte? Devemos nos submeter à retórica dos livros e apostilas para sermos livres pensadores?

Um dos erros mais graves no ensino da matemática em nosso país reside na impensada prática da repetição de autores de livros e apostilas e profissionais do ensino, os quais se esforçam a extremos para divulgar uma imagem de que a matemática é indiscutível, perfeita e acabada. Afinal, é uma ciência exata. Isso naturalmente intimida aqueles que não querem abrir mão de sua individualidade. Uma disciplina tão rígida pode engessar a mente, como realmente o faz na cabeça de muitos docentes.

Tomemos o exemplo da operação de divisão. Quantos são aqueles que afirmam que não faz sentido dividir por zero? Afirmar isso a um jovem é uma forma de contribuir para o engessamento de sua mente. E são inúmeros os autores e professores que repetem essa afirmação sem jamais refletirem sobre o que de fato estão dizendo. Matemática não se faz por princípios imutáveis. Do ponto de vista lógico, nada impede de se definir divisão por zero. Se usualmente não se divide números naturais, inteiros ou reais por zero, é por mera convenção. Os jovens deveriam ser instigados e pensar em matemáticas alternativas, como de fato existem, espalhadas pelo mundo que transcende o umbigo de nossos mestres. Ou seja, por que não questionar como seria uma matemática que permitisse a divisão por zero? Como ficaria o estudo de operações entre matrizes? E os sistemas lineares?

Matemática trata da definição de escopos, da qualificação de discurso. Quando se diz que não é possível subtrair números naturais, entenda-se com isso que a operação de subtração (como usualmente se faz entre números inteiros) não pode ser definida entre os números naturais. Mas nada nos impede de definirmos outro tipo de subtração entre números naturais.

Neste sentido, matemática não é a ciência do que faz sentido. Matemática é o exercício da qualificação de discurso. No âmbito de um dado sistema matemático, certas operações (por exemplo) podem ser executadas e outras não. Quando isso é aplicado nas ciências reais (física, química, biologia, linguística, economia, medicina, direito etc) conseguimos estabelecer mais facilmente o caráter epistemológico de tais ciências. A epistemologia se refere aos limites do conhecimento científico. Como na matemática se definem linguagens formais nas quais essa qualificação é muito precisa, o emprego de tais linguagens é um agente extremamente facilitador.

Não é possível descrever em uma linguagem natural como o português o funcionamento de um automóvel ou as dinâmicas de corpos celestes. Quando a matemática entre em cena, ela oferece uma linguagem que qualifica e que viabiliza aplicações tecnológicas formidáveis.

Ou seja, a matemática pode ser motivada por seu caráter aplicativo e filosófico. As aplicações são mais do que conhecidas. Cercam-nos a todo instante. Já a contraparte filosófica reside no poder de qualificação de discurso das linguagens matemáticas. Como filosofia é o exercício do senso crítico, matemática também o é. Consequentemente, matemática é motivo de discussão e não ferramenta de doutrinação.

sábado, 7 de novembro de 2009

Trigonometria e Ensino Médio


Muitos livros e apostilas de matemática do ensino médio definem seno e co-seno a partir de uma razão entre comprimentos de lados de um triângulo retângulo. Mesmo definições que fazem uso do chamado círculo trigonométrico apelam para essa noção, considerando somente triângulos retângulos com hipotenusas unitárias. Costuma-se dizer que o seno de um ângulo agudo de um triângulo retângulo é, por "definição", a razão entre a medida do cateto oposto ao ângulo em questão e a medida da hipotenusa do triângulo retângulo dado. Essa suposta definição é empregada para calcular, sem dificuldades, o seno de certos ângulos chamados de notáveis, como 30 graus, 45 graus e 60 graus. Tais ângulos notáveis podem ser facilmente obtidos a partir de polígonos regulares, como triângulos equiláteros e quadrados. É realmente curioso como alunos e professores se contentam com cálculos simples, como o seno de ângulos notáveis ou de ângulos que podem ser obtidos via operações elementares entre notáveis, como 15 graus, que é a diferença entre 45 graus e 30 graus.

Mas calcular o seno de ângulos notáveis não representa exatamente um desafio intelectual e está longe de passar pelo escrutínio de um teste crítico sobre o conceito. Problema pode ocorrer se um aluno com senso crítico perguntar ao professor, por exemplo, como calcular o seno de √2 graus, entre outros casos não-notáveis, mas que certamente podem surgir em aplicações interessantes em termos até mesmo de necessidades do dia-a-dia.

Ainda que, para fins de simplificação, seja considerado que a hipotenusa mede 1 (uma unidade de comprimento), fica inviável determinar o seno de √2 graus sem recorrer a uma calculadora – que fornece apenas valor aproximado por causa de suas limitações em representação decimal finitária – ou a uma tabela de senos (de origem misteriosa, do ponto de vista do aluno).

Qual é o procedimento que a calculadora científica utiliza para calcular o valor do seno de um ângulo qualquer? A calculadora desenha um triângulo retângulo com ângulo igual a √2 graus e mede o valor do cateto oposto ao ângulo em questão em um hipotético triângulo retângulo com hipotenusa de comprimento unitário? A resposta é obviamente negativa. Calculadoras eletrônicas não fazem desenhos em seus circuitos internos. E quanto à tabela de senos? De onde vem? Foi trazida do alto de uma montanha por algum excêntrico e fanático pitagórico? Se for este o caso, prefiro não saber. Não confio no conhecimento conseguido por revelação.

Para se calcular o seno de √2 graus, ainda que a hipotenusa tenha medida unitária, precisamos conhecer a medida do cateto oposto. Mas para conhecer a medida do cateto oposto ao ângulo de √2 graus, é preciso saber o valor do seno de √2 graus! Isso remete a uma violação da condição de eliminabilidade em definições. Afinal, sob a ótica das teorias de definição hoje conhecidas, toda definição explícita (aquelas da forma "definiendum é, por definição, o definiens") deve ser eliminável. Ou seja, o definiendum deve ser substituível pelo definiens. E não há número ou expressão (definiens) que possa ser usada para substituir por seno de √2 graus (definiendum).

O fato é que uma "definição" de seno que dependa do valor de um cateto de um triângulo retângulo, depende de um conhecimento prévio da medida de tal cateto. Porém, para conhecer a medida do cateto oposto ao ângulo, é necessário conhecer o seno dele, tendo em vista que a relação entre ângulo e cateto ocorre por meio do seno. Há aqui uma circularidade. A suposta definição de seno em termos de cateto oposto e hipotenusa não é de fato uma definição. É como se o seno, supostamente definido como razão entre cateto oposto e hipotenusa, fosse um conceito não-eliminável, pois o seno depende do cateto oposto, o qual depende do seno. Não há de fato uma relação de equivalência entre um definiendum e um definiens que obedeça ao critério de eliminabilidade.

A propriedade usual que estabelece a relação entre seno de um ângulo e razão entre medidas de lados de um triângulo retângulo está correta. Mas não pode ser usada para fins de efetiva definição de seno.

Uma definição usual para seno é a seguinte:

Seno é uma função real y com domínio no conjunto dos números reais, tal que y’’ + y = 0 e tal que y(0) = 0 e y’(0) = 1, sendo que y’ e y’’ são, respectivamente, a derivada e a derivada segunda de y, e y(0) e y’(0) são as imagens de 0 (zero) pelas funções y e y’.

Ou seja, a função seno é uma solução de uma equação diferencial linear homogênea de segunda ordem com certas condições de contorno que, se modificadas, podem permitir a definição de outras funções circulares como co-seno.

É claro que tal definição se refere somente a ângulos medidos em radianos. Para obter uma definição de seno para ângulos em graus (ou grados), é necessária uma conversão que deve modificar os coeficientes da equação diferencial dada acima.

A solução para essa equação diferencial, com as condições de contorno dadas (y(0) = 0 e y’(0) = 1), pode ser representada por meio de uma série de potências conhecida como série de Maclaurin. Um bom livro de cálculo diferencial e integral oferece todos os pré-requisitos para compreender detalhadamente a definição de seno apresentada. Por exemplo, a série de Maclaurin correspondente à função seno é:

sen x = y(x) = x – x^{3}/3! + x^{5}/5! – x^{7}/7! +... ,

sendo que x é um número real, x^{n} é x elevado a n, / denota divisão entre números reais e n! é o fatorial de n.

Essa série é convergente para qualquer número real x, ou seja, existe um número real S que é a "soma das infinitas parcelas com sinais alternados" da série, independentemente do valor escolhido para x.

O leitor deve perceber também que tal série é definida por parcelas que têm sinais trocados de maneira alternada, com o expoente e o denominador sendo definidos a partir de números naturais ímpares em ordem crescente.

Na prática, calculadoras eletrônicas e computadores são programados para fazerem um truncamento na série, somando apenas as M primeiras parcelas, a fim de se obter um valor aproximado para seno de x, de acordo com a precisão desejada e viável para a calculadora. Em outras palavras, o número de parcelas M utilizadas nessa soma finita depende do grau de precisão desejado e da capacidade de processamento da máquina. De qualquer modo, essa definição é eliminável, no sentido de que dado qualquer real x, sempre é possível substituir sen x por um número real, que é a soma da série de Mclaurin para esse valor de x.

No entanto, a definição de seno e co-seno como solução de uma equação diferencial acaba gerando um sério problema do ponto de vista didático. Afinal, equações diferenciais não constituem um tema do ensino médio, apesar de trigonometria o ser. Então, de que forma devemos ensinar trigonometria no ensino médio, sem cometer erros conceituais e ainda tornar o assunto acessível ao aluno que domina somente os pré-requisitos normalmente disponíveis nesse nível escolar?

Algumas possíveis propostas são as seguintes:

1) Proceder ainda com a propriedade de que seno é uma razão entre cateto oposto e hipotenusa e que co-seno é uma razão entre cateto adjacente e hipotenusa, mas sem afirmar ou insinuar que essas propriedades efetivamente definem seno e co-seno.

2) Instigar o senso crítico do aluno para que ele perceba que a propriedade de razão entre lados de um triângulo retângulo não permite determinar o seno ou o co-seno de ângulos que não são notáveis ou deles derivados por certas operações elementares.

3) Tornar claro ao aluno que existem definições precisas para seno e co-seno e que estas permitem o cálculo do seno e do co-seno de qualquer número real e com a precisão desejada, sem que seja necessário apelar a "místicos oráculos" como calculadoras, computadores ou tabelas.

4) Tornar claro que um estudo mais aprofundado sobre trigonometria exige o domínio de uma matemática mais avançada, que se aprende somente em cursos superiores nos quais essa matéria está significativamente presente. É claro que a matéria em questão é o cálculo diferencial e integral, o qual pode demandar uma fundamentação através da análise matemática, da teoria de conjuntos e, principalmente, da lógica.

O professor deve saber que calculadoras científicas processam seno e co-seno através do truncamento das séries de potência, que são soluções das equações diferenciais que definem seno e co-seno. Como uma série de potências é definida a partir das chamadas quatro operações usuais entre números reais (adição, multiplicação, subtração e divisão), a imagem de uma função trigonométrica qualquer é obtida a partir de um número finito de operações elementares. Ou seja, trigonometria, para fins práticos, é tratada algebricamente e não por meios geométricos. Se há geometria, ela pode ser usada para uma possível interpretação dos resultados algébricos da trigonometria.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Newton é brasileiro. E daí?


Existem aqueles que se integram ao ambiente se entregando a ele. E existem indivíduos que parecem ter uma aura cujo alcance e magnitude são fortes o bastante para transformar o ambiente em que vivem. O Professor Newton da Costa se enquadra na segunda categoria.

Se o Curriculum Vitae do Professor Newton (como é conhecido por discípulos e colegas) impressiona por sua vasta e expressiva experiência acadêmica, por outro lado ele reflete o espírito de um sobrevivente da selva brasileira, que conseguiu produzir alguns oásis de saber em nosso país.

A realidade das universidades brasileiras é assustadora. As universidades federais, por exemplo, não contam com políticas científicas sérias e não têm autonomia para contratação ou demissão de professores. Mesmo nos raros momentos em que minguadas vagas são ofertadas pelo Governo Federal para fins de realização de concursos públicos, todos os docentes são tratados como iguais. Não há a possibilidade de negociar salários ou benefícios que possam servir de incentivo aos mais competentes. E aqueles que cumprem apenas o mínimo necessário, recebem o mesmo tratamento e salário que seus colegas mais produtivos. O plano de carreira das universidades federais está longe de ser suficiente como forma de estímulo. Afinal, um professor que ganha trinta, quarenta ou cinqüenta por cento a mais do que seu colega, por conta de titulação ou outras manobras de relevância questionável, pode estar realizando um trabalho acadêmico incomensuravelmente superior em termos de qualidade e relevância (a qual se avalia inicialmente por repercussão).

O tratamento igualitário, comunismo intelectual que é (a bandeira da isonomia salarial erguida por sindicalistas), cria um ambiente com uma inércia pouco estimulante. Um espírito verdadeiramente empreendedor como o do Professor Newton certamente deve sentir, mesmo que inconscientemente, os efeitos dessa inércia que se refletem não apenas em superficiais indicativos salariais, mas até mesmo nas políticas institucionais.

As universidades privadas, em geral, evitam a contratação de professores seriamente comprometidos com pesquisa, pois isso pode assustar seus alunos. Professores de instituições privadas de ensino superior, salvo raríssimas exceções, não podem exigir demais de seus pupilos. Alunos academicamente pressionados são futuros inadimplentes em potencial, o que implica em um risco inaceitável a qualquer empresário brasileiro na área de educação. Além disso, professores doutores custam mais caro para as instituições privadas, as quais comumente contam com ilusórios planos de carreiras. Interessam prioritariamente os profissionais menos qualificados, principalmente no que tange à prática da pesquisa científica. É claro que há exceções, como a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, na qual há uma massa crítica tolerável de seriedade acadêmica. Mas exceções, por aqui, não são suficientes para se tornarem regra em nosso imenso território nacional. Este problema, aliás, não é algo inerente à iniciativa privada, como muitos tentam ingenuamente argumentar. Isso porque nos Estados Unidos as melhores universidades são privadas. Nossa mediocridade escolar e acadêmica demonstra ter raízes sociais e culturais muito mais profundas do que questões econômicas.

Entre as universidades estaduais, as mais toleráveis são as paulistas. Elas conseguem, dentro de certos limites políticos e orçamentários, oferecer um suporte a pesquisadores. Mas não chega a ser um apoio de caráter competitivo e de valorização profissional como o que acontece nas melhores universidades norte-americanas, aquelas que são responsáveis pela maior e mais relevante massa de contribuição científica do mundo.

Diante desse quadro, talvez não seja tão surpreendente o fato de não haver um único ganhador do Prêmio Nobel lecionando em qualquer universidade brasileira.

Mesmo assim, o Professor Newton conseguiu se manter incólume no Brasil, realizando pesquisa de ponta em lógica-matemática e áreas correlatas e ainda formando profissionais e pesquisadores que conseguem pouco a pouco alcançar respeitabilidade no cenário acadêmico global. E a pergunta natural que me aflige há muito tempo é a seguinte: Como ele conseguiu fazer isso?

A resposta, após muita reflexão, me parece agora sensata, válida e até óbvia: estratégia.

Sob o enfoque pessoal, o Professor Newton tem uma força individual absolutamente incorruptível diante das inúmeras forças de soma não nula que servem de desestímulo a qualquer pessoa que se proponha a transformar de maneira positiva o ambiente em que vive. Sob outro prisma, ele simplesmente não dedicou toda a sua carreira a uma só instituição de ensino superior.

Foi professor, pesquisador ou conferencista em diversas instituições brasileiras federais, estaduais e privadas, bem como de instituições públicas e privadas de países da América do Sul, América do Norte, Europa e Oceania. A minha tese é a de que essa diversidade institucional e cultural sempre viabilizou uma permanente revitalização profissional e até pessoal do Professor Newton. Onde quer que ele estivesse, seu trabalho e carisma imediatamente despertavam a atenção de jovens estudantes ou experientes pesquisadores. E algumas dessas pessoas acabaram se tornando colaboradores ou discípulos. Diversidade sempre foi um ingrediente fundamental em processos evolutivos.

A atuação do Professor Newton em nosso país sempre foi estimulante àqueles que o conheceram de perto. Freqüentemente eu me sentia desanimado, trabalhando no Paraná. Ao viajar para São Paulo, principalmente nos anos 1990, retornava ao lar e à minha universidade com ânimo o bastante para manter meu trabalho de ensino e pesquisa por longos períodos de tempo. E nunca ouvi dele frases do tipo “Anime-se!” ou “Continue, que vale a pena!”. Isso simplesmente não faz sentido, pois viola sua natureza, além de não ser o suficiente para convencer alguém que tenha um mínimo de inteligência. O que me animava nos contatos pessoais com esta extraordinária figura era o exemplo de paixão, garra e apurado senso crítico investidos na prática da ciência. Nada opera de maneira mais significativa para fins de aprendizado do que exemplos. Não há discurso que supere ou conteste a prática. Isso porque discursos podem ser verdadeiros ou falsos. E sempre devemos lembrar que o conceito de verdade é muito flexível, conforme a filosofia da ciência nos tem ensinado. Quanto à prática, esta se resume a fatos. Não há como contestar fatos (apesar de alguns ainda tentarem).

É claro que a capacidade individual do Professor Newton para vencer obstáculos deve tê-lo ajudado bastante. Mas não acredito que tenha sido o único fator. A melhor das sementes não consegue crescer em terreno de pouca fertilidade, como ele sempre insistiu em conversas pessoais e palestras. Para melhorar as chances de crescimento, o solo deve ser renovado. E foi isso o que o Professor Newton fez. Não sei se foi intencional. O fato é que funcionou bem, apesar de ele ter priorizado o Brasil em suas peregrinações pelo mundo.

Em conversas pessoais, o Professor Newton sempre deixou claro que instituições como a Universidade de São Paulo e a Universidade Estadual de Campinas o receberam e o trataram muito bem. Portanto, tudo o que escrevo aqui se refere apenas às minhas impressões pessoais. De forma alguma deve o leitor entender que meu texto reflete qualquer opinião pessoal do Professor Newton. Mas o fato é que tenho certa experiência acadêmica. E inevitavelmente acabo pensando na questão: Como ele conseguiu e como ainda consegue, mesmo depois dos oitenta anos de idade?

Entendo que uma universidade como a de São Paulo tem uma estrutura muito melhor do que qualquer outra instituição de ensino superior do Brasil. Mas garanto que não faz sentido a promoção de qualquer comparação entre ela e universidades como Stanford, Yale, Harvard, Sorbonne. Se o leitor duvidar, convido-o a passar uma temporada olhando de perto como funcionam as grandes universidades norte-americanas, européias e asiáticas.

Para mim parece muito deprimente a idéia de se aposentar em uma universidade brasileira. Isso porque, após a festa de despedida do aposentado, todos imediatamente o esquecem. Os problemas do dia-a-dia na universidade se sobrepõem a qualquer noção de continuidade de uma obra. Uma universidade como a Estadual de Campinas criou o Museu Newton da Costa. É uma forma de recordar e homenagear, ainda que seja uma iniciativa de pouca dinâmica para conseqüências relevantes no futuro. A Universidade Federal do Paraná (citando outro exemplo) concedeu o título de Doutor Honoris Causa. É outra forma de reconhecimento e lembrança.

Mas, no caso do título concedido pela Universidade Federal do Paraná, na qual trabalho há quase duas décadas, vale lembrar que não existe a cadeira Newton da Costa. Não existe qualquer senso de continuidade à obra iniciada por esta importante figura do cenário científico internacional. E ainda assim a UFPR se vangloria de ser a mais antiga universidade do país, como se isso tivesse alguma relevância à população acadêmica brasileira.

Quando um professor pede exoneração, se aposenta ou falece, apenas sua vaga fica disponível. É uma vaga, não uma cadeira ou cátedra. Novos concursos realizados acabam simplesmente preenchendo vagas. Não há cátedras, não há continuação, não há tradição acadêmica. É claro que isso não é culpa da universidade, que não tem autonomia administrativa para fazer ou até propor algo diferente, apesar de o Governo Federal afirmar documentalmente que tem. Mas o fato é que esse tipo de postura acaba fomentando um ambiente de esquecimento, voluntário ou não. Não é uma cerimônia assistida por poucos e ignorada pela maioria que vai resgatar de maneira significativa a memória do Professor Newton e de suas contribuições, bem como de qualquer outro pesquisador ou cientista.

Reconheço que muitos nas universidades fazem o melhor que podem, às vezes indo muito além. Não estou criticando pessoas ou instituições específicas nos últimos parágrafos. Estou criticando a existência de uma intrincada rede no seio social brasileiro que dificulta a transformação do ambiente acadêmico em um lugar que realize pesquisa de ponta e educação de qualidade. Talvez essa rede exista por pura ignorância. É possível que nossos dirigentes simplesmente não tenham a menor idéia de como administrar o ensino superior brasileiro e sua inseparável pesquisa científica. E para o povo é possível que baste um carro na garagem e uma casa na praia, ou carnaval e futebol, para que se alcance a felicidade individual ou qualquer noção arbitrária de justiça social.

O Professor Newton poderia ter encontrado um ambiente muito mais propício à pesquisa em uma boa universidade norte-americana ou européia. Ele preferiu ficar no Brasil. Um dos resultados disso foi a formação de graduados, mestres e doutores que também lutam para fazer a diferença em nosso país ou mesmo no exterior. São vários os ex-alunos do Professor Newton que se destacaram e se destacam pela qualidade de suas pesquisas e pelo exemplo de suas aulas.

O espírito renovador do Professor Newton não se mostra apenas diante do fato de ele ter trabalhado em muitas instituições de significativo porte acadêmico. Percebe-se isso também em suas obras publicadas, que concatenam de maneira surpreendentemente harmoniosa disciplinas como lógica, matemática, física, economia, filosofia.

Ele é conhecido mundialmente como o criador das lógicas paraconsistentes, que uma importante rede de televisão brasileira chegou a chamar de lógica paraconsciente, evidenciando mais uma vez o insistente descaso com ciência e cultura. Apesar de sua pesquisa ter motivações puramente matemáticas, a lógica paraconsistente rendeu inúmeras aplicações em engenharia de produção, engenharia aeronáutica, robótica, inteligência artificial e até medicina.

Ele também resolveu, em parceria com o Professor Francisco Doria, diversos problemas relativos aos fundamentos da física. Esses trabalhos mereceram citações na revista inglesa Nature e no livro Mathematics: Frontiers and Perspectives, editado pelo grande matemático russo Vladimir Arnol'd, em parceria com colaboradores, e publicado em 2000 pela Sociedade Americana de Matemática, uma das mais influentes instituições da área. Este livro, de leitura obrigatória para qualquer um que se julgue interessado por matemática, aponta para as tendências desta ciência no século 21. Em outras palavras, a pesquisa do Professor Newton demonstra ter impacto de extrema significância científica aqui e no exterior, mesmo sob perspectivas futuristas feitas por grandes nomes da matemática mundial.

Tendo isso tudo em vista, é de causar grande estranheza que o Professor Newton não seja membro da Academia Brasileira de Ciências. Se essas conquistas não o qualificam, eu gostaria de saber o quê o qualificaria?

No campo da filosofia o Professor Newton também demonstra relevância, uma vez que é membro da Academia Internacional de Filosofia da Ciência, em Bruxelas, Bélgica, e é o único brasileiro membro do Instituto Internacional de Filosofia, sediado em Paris, França. O fato de ele ter sido eleito membro deste último por unanimidade não foi por acaso. Sua prática de filosofar é no sentido de ter e desenvolver uma linha própria de pensamento na qual ele qualifica com grande rigor e originalidade o que é o conhecimento científico. A filosofia do Professor Newton, se contrapondo às idéias de autores como Karl Popper, se apóia em grande parte no conceito de quase-verdade. Esta é uma generalização de idéias anteriormente propostas pelo grande lógico polonês Alfred Tarski, que ele teve a oportunidade e honra de conhecer pessoalmente.

Mas não podemos ignorar o fato de que o Professor Newton é também membro titular da Academia Brasileira de Filosofia. Ou seja, apesar de os filósofos brasileiros terem linhas de pesquisa radicalmente diferentes, eles não se recusaram a reconhecer o impacto filosófico da obra deste renomado pesquisador. Certamente este exemplo deveria ser seguido pela Academia Brasileira de Ciências. Ciência e filosofia não são atividades intelectuais incompatíveis. Ao contrário, uma complementa a outra. E se a percepção do mérito em si não é viável aos intelectualmente menos capazes, que pelo menos as citações na relevante literatura especializada sirvam de norte para uma decisão mais do que justa.

É possível que exista correlação entre essa falta de reconhecimento nosso à obra do Professor Newton e o fato de o Brasil ter um dos piores desempenhos escolares de ciência e matemática no mundo, pelo menos do ponto de vista de avaliações internacionais. Há algo profundamente errado em nossa educação científica e matemática, em todos os níveis escolares.

Nossas universidades não estão conseguindo produzir docentes que cumpram com propriedade seus papéis. Essas mesmas universidades também não conseguem produzir pesquisadores que conquistem prêmios como o Nobel ou a Medalha Fields. E foi neste difícil e contraditório ambiente que um indivíduo como o Professor Newton conseguiu se integrar sem se entregar. E ele não apenas se integrou, como integrou jovens também.

Preparar jovens para o mundo significa prepará-los para surpresas. O mundo é repleto de surpresas a cada instante. E não há livros ou apostilas que consigam preparar alguém para o imprevisível. Somente o constante exercício do tirocínio crítico sobre o que se produz e sobre o que se pretende produzir é que pode trazer luz a um futuro incerto. Caso contrário, a luz do fim do túnel pode se transformar em uma locomotiva em nossa direção. E o senso crítico é o que o Professor Newton mais exige de seus discípulos e colaboradores.

Não conheço discípulo do Professor Newton que não tenha sido duramente criticado por ele, ainda que apenas no âmbito intelectual. E mesmo este texto teve que ser escrito sob minha inteira responsabilidade. Pois estou ciente de que o Professor Newton é muito mais cuidadoso com suas palavras do que eu. Mas o fato é que não estou disposto a esperar a velhice chegar para desabafar o que acho que é certo ou justo.

O justo, o certo, é o trabalho intelectual pesado, exemplo diário tão bem dado pelo Professor Newton. O justo é a prática do senso crítico, a capacidade de perceber que não há autor que não cometa erros, que não há professor que não se engane e cujos erros não sejam até grosseiros. Afinal, até mesmo a Academia de Ciências de nossa nação está sujeita a erros.

Lembro de certa vez em que um rapaz quis argumentar com o Professor Newton: “Mas foi o senhor quem disse isso!” Ele imediatamente respondeu ao rapaz que este deveria pensar por si só e não depender das palavras de outros. O Professor Newton nunca esteve interessado em provar se ele está certo ou errado. O que ele sempre exigiu de seus alunos é argumentação, qualificação de discurso, tirocínio crítico, honestidade intelectual, trabalho duro, dedicação, paixão pelo que faz, garra.

No Brasil estamos acostumados a viver em uma espécie de paraíso tropical no qual se acredita haver boas universidades, boas escolas, bons professores, bons pesquisadores. Mas a esta crença eu remeto uma frase que inicia algumas conferências do Professor Newton: “Vim jogar a serpente no paraíso de vocês”.

O Professor Newton é uma espécie de serpente que vive no paraíso tropical brasileiro. Por sorte, não está sozinho. Mas eu gostaria de ver o dia em que se forme uma massa crítica de sedentos por ideais que nos conduzam à nação do futuro que há décadas vem sendo anunciada e até hoje está longe de ser cumprida.

Não são nossas palmeiras e sabiás que construirão um Brasil próspero, mais justo, mais seguro, mais saudável, melhor educado. O Brasil próspero e justo depende de educação feita por profissionais altamente qualificados. E um bom profissional não é aquele que conhece centenas de livros e artigos e apenas repete o que outros disseram. Um bom profissional é aquele que exerce o direito de questionar aquilo que se crê já estabelecido, é aquele que provoca, que instiga. Mas para que isso seja feito com propriedade, uma formação de real qualidade é fundamental. E enquanto não surgirem programas sérios de valorização aos profissionais de ensino realmente qualificados, seremos eternamente todos iguais entre nós e invisíveis perante o resto do mundo.
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Para ler uma contribuição de Newton da Costa neste blog clique aqui.

Matemática como Arte














Compreender uma teoria física sob enfoques experimental, matemático e filosófico demanda a capacidade de apreciar tal teoria como uma obra de arte. Daí seu apelo estético. O próprio papel da matemática, área do conhecimento sem compromisso apriorístico com o mundo físico, passa a se destacar como multifacetado. Afinal, queiramos ou não, a matemática encontra fascinantes aplicações no mundo que chamamos de real.

Comparemos essa tese com a apreciação de obras de arte. Em pinturas de Leonardo Da Vinci, do século 15, são retratados fenômenos óticos impressionantes como:

(i) A difusão de cores em regiões do quadro onde outros artistas teriam colocado meras sombras escuras;

(ii) A interferência azulada que a atmosfera provoca e que se torna mais evidente em objetos distantes como montanhas;

(iii) Fenômenos de difração que fazem com que os objetos não tenham contornos bem definidos.

A difusão de cores, por exemplo, só foi novamente expressa com o mesmo nível de maestria no século 18, pelo holandês Jan Vermeer. E isso ocorreu principalmente pelo interesse do artista em ótica. Ou seja, como apreciar uma obra de arte do grande Da Vinci sem uma cultura técnica e científica adequada? Arte não se faz unicamente com sensibilidade, como reza a crença popular, mas com profundo conhecimento técnico. Alimentar-se de conhecimento científico ajuda a naturalmente se desenvolver a sensibilidade que dele se deriva. Só é sensível aquele que sente. Se formos cegos culturalmente, não poderemos sentir a arte e, muito menos, aprecia-la.

A arte é multifacetada, assim como a ciência. Aí reside parte do valor estético dessas duas manifestações culturais, a saber, arte e ciência. Consideremos outro exemplo.

Do ponto de vista puramente geométrico, a perspectiva de Da Vinci apresenta apenas um ponto de fuga, como muitas vezes é ensinado em aulas de educação artística ou de trabalhos manuais na escola. Agora consideremos um artista posterior, como o francês Paul Cézanne.

O célebre quadro Os Jogadores de Cartas (1890 – 1892; ver figura) pode ser facilmente interpretado como uma obra carregada de erros grosseiros de perspectiva e, por isso, subestimada por um observador mal informado e desatento. Isso porque vemos dois homens sentados a uma mesa, jogando cartas; sendo que a mesa não tem um único ponto de fuga, em termos de perspectiva, mas é vista simultaneamente de dois pontos de vista distintos. A idéia de Cézanne era retratar em uma só tela a maneira como realmente vemos o mundo. Não é normal ficarmos parados diante de uma imagem simples e provinciana como a de dois jogadores de baralho. Cézanne considerou o observador em movimento e que, por isso, muda seu ponto de vista continuamente. Essa dinâmica está retratada de maneira revolucionária sobre um tema banal. Daí deriva parte de sua beleza. Mas como apreciar tal obra se nos limitarmos ao famoso “gosto não se discute”? A apreciação de arte pouco tem a ver com gosto. O que está em jogo na apreciação da beleza é cultura, educação.


O apelo estético da arte nem sempre se limita a uma questão de gosto, mas se expande aos domínios do conhecimento, da cultura, da observação atenta. Hoje em dia, por exemplo, já se percebe como o simples uso de cores pode fazer emergir propriedades que as transcendem, como formas e profundidade, ainda que não se apele a contornos bem delineados ou técnicas geométricas que exaltem perspectiva.

Algo semelhante ocorre com a matemática, a qual tem forte apelo estético. Se um professor explorar criticamente com seus alunos um conteúdo matemático, poderá fazer com que seus pupilos apreciem a matemática como algo belo, devido às suas inúmeras facetas. E isso pode ocorrer até mesmo no ensino fundamental.

Consideremos como exemplo muito simples o número a seguir, representado em base decimal:

2.475.813.660.455.032.795.957.231.615

Digamos que alguém (um professor brincalhão, mas esperto) diga que este número contém uma mensagem pictórica em sua representação em base binária. Convertendo-o para a nova base, temos:

1111111111111110001111011110111011101111011101110111101110111011111000111101111111111111111.

Ele agora é uma seqüência de 91 algarismos limitados aos valores 0 e 1. Acontece que 91 é um número composto, resultado do produto entre dois números primos, 7 e 13. Se olharmos novamente para a seqüência em questão, do ponto de vista de uma matriz com 7 linhas e 13 colunas, teremos a seguir:

1111111111111
1100011110111
1011101110111
1011101110111
1011101110111
1100011110111
1111111111111

Ou seja, a mesma seqüência fria de zeros e uns é agora uma imagem cujo fundo é feito com repetições do algarismo 1, sobre o qual está escrito a mensagem “OI” com zeros.

Essa é uma maneira usual de compor imagens com seqüências de algarismos, as quais podem até ser transmitidas por um aparelho muito rudimentar de rádio ou mesmo sinais de fumaça. Um número em base binária que seja uma seqüência de n dígitos, tal que n é produto de dois números primos, só pode transmitir imagens bidimensionais em preto e branco, se interpretarmos o 1 como preto e o 0 como branco, ou vice-versa.

Mas um número em base decimal que tenha m dígitos, tal que m seja o produto de três números primos, pode corresponder a uma imagem tridimensional que envolve até dez cores. Se quisermos aumentar o número de cores, basta usarmos bases numéricas com mais algarismos ou dígitos. Se quisermos x dimensões, tudo o que temos que fazer é escrever uma seqüência com m dígitos tal que m seja o resultado de um produto entre x ocorrências de números primos, lembrando que o número de ocorrências desses fatores primos define a dimensão da imagem.

O número 2.475.813.660.455.032.795.957.231.615, anteriormente apresentado, é uma seqüência de vinte e oito algarismos. Acontece que o número 28, decomposto em fatores primos, pode ser reescrito como 2 ∙ 2 ∙ 7, o que pode ser visualmente interpretado como uma psicodélica imagem tridimensional em forma de uma matriz de 2 por 2 por 7 e com uma paleta de dez cores, sendo cada cor representada por um algarismo da base decimal. Essa mesma imagem tridimensional, diante do processo de redução de base, se transforma na coerente imagem bidimensional de duas cores na qual se lê a amigável mensagem “OI”. Ou seja, as mudanças de base numérica podem servir como meios de tradução entre imagens de natureza aparentemente sem qualquer correlação.

Não há limites para cores e nem dimensões. Seqüências numéricas podem representar imagens com cores que o olho humano não consegue sequer distinguir ou perceber, e em universos com quantias arbitrárias de dimensões igualmente não perceptíveis por nossos limitados sentidos. Isso significa que números podem esconder em seus meandros todas as imagens concebíveis pelo nosso intelecto e mais um elenco de imagens que jamais entenderíamos, por conta de nossas próprias limitações sensoriais e intelectuais.

Se uma simples brincadeira com números inteiros positivos demonstra esse tremendo potencial estético da matemática, imagine a matemática toda, com sua vasta riqueza em termos de estruturas algébricas, topológicas e de ordem, em fundamentações conjuntistas; ou em termos de formulações categoriais que substituem miríades de simples equações por complexos diagramas; entre outras tantas possibilidades conhecidas ou em desenvolvimento no dias de hoje.

A exploração de múltiplas facetas da matemática pode ser feita, a princípio, sobre todos os assuntos da matemática básica, das quatro operações elementares aos logaritmos e trigonometria.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Educação


Este blog é destinado a informações e pontos de vista sobre ensino e educação, com especial ênfase à matemática. Há críticas e sugestões sobre como melhorar o sistema de ensino em nosso país. Também enfatizamos a relação da matemática com ciências reais (como física, biologia, economia, entre outras), filosofia, história e artes.